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Nº 1865 - Ano 40
26.05.2014

opiniao

O indígena na UFMG: reflexões sobre a inclusão

*Lívia de Souza Pancrácio de Errico 

A inclusão dos estudantes indígenas na Universidade é uma ação afirmativa, pois, por meio de um conjunto de medidas ou ações, promove o resgate histórico ou contribui para a desestruturação das relações assimétricas entre os grupos sociais envolvidos. O escopo de uma ação afirmativa nos remete ao seu caráter militante, cuja organicidade se realiza na medida em que redefine a noção de igualdade oitocentista, derivada das revoluções francesa e americana, para o conceito da igualdade material ou substantiva. Sob esse aspecto, a reação à discriminação vai além da sua proibição ou da distribuição de sanções aos envolvidos no ato, mas tem a intenção de pactuar novos comportamentos sociais que podem emergir do aprofundamento da discussão em torno do caráter concreto das desigualdades existentes em nossa sociedade.

Assim, a UFMG avança ao construir e desenvolver ações que buscam garantir o acesso e a permanência dos estudantes indígenas. Entretanto, é necessário evoluir ainda mais no que tange à construção de nova visão sobre o problema. Isto é, conhecer ou reconhecer em que medida a inclusão indígena na UFMG contribui ou não para o esfacelamento da discriminação – em suas dimensões estrutural e cultural – que está enraizada nas ações cotidianas do fazer acadêmico.

O trabalho da Comissão de Acompanhamento dos Estudantes Indígenas (Caei), criada para implantar o Programa de Acesso e Permanência de Estudantes Indígenas na UFMG, nos remete a reflexões sobre o processo de concretização de uma ação afirmativa, considerando sua eficácia na mitigação dos comportamentos discriminatórios. Se por um lado as ações da Caei operacionalizaram a permanência dos indígenas selecionados para vagas suplementares oferecidas pelos cursos de Enfermagem, Odontologia, Medicina, Ciências Sociais, Ciências Biológicas e Agronomia, por outro, o acompanhamento minucioso do desempenho desses estudantes conformou-se às expectativas do pensamento hegemônico que representa o sucesso acadêmico. Nesse processo, nos parece que a garantia do acesso e da permanência, que representa, em última análise, a consolidação da ação afirmativa, passa pela conformação do diverso e do diferente ao padrão hegemônico, causa primeira dos processos de exclusão que fundamentam a desigualdade.

A vagarosa percepção dessa contradição inerente ao processo resultou dos diferentes embates entre os atores envolvidos e redirecionou a compreensão de alguns dos principais postulados que orientam o trabalho. Entre eles, destaco a reavaliação da função de retribuição, o acesso em troca do desempenho, caracterizado pelo sucesso progressivo e o envolvimento numa diversidade de tarefas, entre as quais o protagonismo político. Nesse ponto, deve-se cuidar para que a discriminação não seja revestida ou vista nova roupagem, não menos inglória, porém mais aceitável e consensual.

Vale salientar que, a exemplo de outras tantas situações discriminatórias, fica a impressão de que a correção das situações de desigualdade só poderá ser alcançada na medida em que o discriminado prove “ser mais”, em consonância com os padrões meritocráticos que hoje orientam nossa sociedade. Situação semelhante, por exemplo, aos processos vivenciados pelas mulheres que competem no mercado de trabalho com os homens pelas vagas das ditas ocupações masculinas.

A partir dessas constatações, no momento de institucionalização desta ação afirmativa em nossa Universidade, é imperiosa a revisão de conceitos e a delimitação de novas garantias. A eficácia da ação afirmativa aqui discutida se realiza na conscientização da nossa responsabilidade pública, na discussão pertinente e oportuna da legitimidade do mérito, considerando que a nossa sociedade é desigual nas oportunidades que distribui para os diferentes grupos étnicos, raciais e estratos sociais. Os estudantes indígenas não deveriam ao longo do seu percurso acadêmico preocupar-se continuamente em validar ou pagar pelo seu acesso à Universidade, por meio da excelência no desempenho ou de outra moeda, mas a Universidade, como aparelho hegemônico de reprodução social, deveria estar atenta às necessárias ações que deve realizar para concretizar seu comprometimento com a mudança e com a diversidade cultural. Assim, redimensionam-se a discussão e a proposta de renovação do Programa de Acesso e Permanência dos Estudantes Indígenas na UFMG com melhor compreensão do que é o direito ao acesso.

Diante do exposto, conclui-se que os indígenas na Universidade remetem à necessidade da revisão dos processos políticos e pedagógicos, além daqueles relacionados à produção e à legitimação do conhecimento. Dessa forma, o Programa também estabelece uma demanda por novas formas de ensino, estimulando ações proativas que busquem transformar os encontros pedagógicos em espaços nos quais se possa construir um diálogo que privilegie a interculturalidade.

A noção de interculturalidade carrega os princípios do pluralismo e da diversidade, que, por sua vez, são capazes de engendrar transformações a partir da criação de linguagens aptas a delimitar um campo conceitual, analítico e teórico gerador de conceitos, categorias e noções novas. O que se promove é um conhecimento que é outro, para além da hibridização e da mescla, que se responsabiliza pela formação de pensadores, protagonistas indígenas, capazes de trazer a transformação sócio-histórica necessária para a construção de uma sociedade mais justa e equitativa para a dimensão acadêmica.

* Professora da Escola de Enfermagem e presidente da Comissão de Acompanhamento de Estudantes Indígenas (Caie-UFMG)