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Nº 1889 - Ano 41
15.12.2014

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Olhos para o sofrimento

Tese premiada investiga como o fotojornalismo faz do corpo lugar de afetos e de disputa pela verdade

Itamar Rigueira Jr.

Ainda criança, a pesquisadora Angie Gomes Biondi deparou, pela primeira vez, com imagens de corpos mortos no dossiê Brasil nunca mais, sobre a violência perpetrada pela ditadura militar e que fazia parte da biblioteca de sua tia. A lembrança dessa experiência forte lhe veio à mente quando começou a elaborar o projeto de pesquisa de doutorado, submetido à seleção da pós-graduação em Comunicação Social da UFMG. Isso a ajudou a se decidir pela investigação acerca da relação do espectador com as imagens, produzidas pelo fotojornalismo, de pessoas famintas, subjugadas e assassinadas.

A pesquisa – contemplada na última semana com o Prêmio Capes de Tese 2014 – revela que há um modo de olhar para cada corpo que sofre. “O corpo famélico não é o mesmo que o corpo acidentado ou o corpo doente ou, ainda, o corpo violado. Para cada um deles, há uma convocação específica do olhar do espectador. Há uma conjugação de formas e forças que compõem corpo e olhar”, afirma Angie, que analisou 77 fotografias vencedoras dos prêmios World Press Photo e Esso de Jornalismo, de 1955 a 2010.

Em seu trabalho, a pesquisadora chama a atenção para um “paradoxo curioso”. Ela lembra que o fotojornalismo sempre ocupou lugar de fala legítimo sobre os acontecimentos do mundo, mas, ao se observar esse lugar, é possível lançar suspeição sobre seu funcionamento. “Apesar de sua tradicional relação com o ‘projeto’ ou o ‘desejo’ documental, o fotojornalismo está assentado sobre um pretenso valor de verdade, um realismo que não poderia emergir jamais por sua prática e forma.”

Castigo e suposta fatalidade

Angie Biondi dividiu as imagens em categorias de acordo com a situação do corpo retratado. O corpo supliciado (por fome, catástrofes, doenças ou acidentes) traz à tona a noção de punição ou culpa, amplamente explorada por Michel Foucault. “A questão é que a culpa que o suplício porta atualmente é implícita, ou seja, aparece atualizada no castigo trazido por uma suposta fatalidade dos acontecimentos e, portanto, esvaziada de responsabilidades”, afirma a autora. “Essa fatalidade está vinculada a grupos étnicos, sociais e econômicos. Quando a noção de responsabilidade se enfraquece, a ideia de fatalidade ganha força, abrigando o conceito de castigo.”

Imagens como as de crianças somalis esquálidas, amparadas por suas mães, sugerem, de acordo com a pesquisadora, o estigma que marca um povo que seria fadado à fome, situação pela qual ninguém se sente obrigado a assumir responsabilidade.

De acordo com a tese, há também o corpo assujeitado – resultado do confronto direto entre sujeito e instituição, sobretudo a policial, em que o corpo é protagonista e porta-voz de protestos – e o corpo abatido, pela guerra, por exemplo. “Nesse caso, ele está completamente despotencializado como cidadão e ser humano, não há mais sofrimento, é um produto residual da sociedade e ninguém dá conta dessa vida”, afirma Angie Biondi em videoaula produzida para divulgação pela Capes.

Resistência na imagem

A autora da tese premiada destaca que o corpo que sofre e o que resiste se confundem, na medida em que “sofrer e resistir são atuações de duração, de prolongamento”. “O corpo que sofre, mostrado na fotografia, é o mesmo que resiste nesse sentido. A imagem fotográfica mobiliza – não imobiliza. Ela prolonga, no tempo, o sofrimento e, por isso, faz do corpo um resistente. O registro faz o sofrimento prolongar-se para o olhar do sujeito espectador”, comenta Angie, que foi orientada pelo professor Paulo Bernardo Vaz.

A pesquisadora, que prefere não falar em conclusões, acredita que promove aberturas, mesmo que pequenas, para a abordagem do tema. Ela cita Roland Barthes, para quem fotografias são feridas. “Essa bela expressão me é muito cara. Feridas incomodam, mas são, funcionalmente, pontos atritados entre interior e exterior. Pequenas fissuras que, de algum modo – neste caso, perturbador – rompem o limite que protege o que está dentro e mantêm excluído o que está fora”, diz Angie Biondi. “Agrada-me compartilhar a ideia de que uma experiência com as imagens fotográficas pode se efetivar assim, rompendo uma área de segurança, de conforto, de contenção e atuando em lugares além dos que lhe foram designados.”

Tese: Corpo sofredor: figuração e experiência no fotojornalismo
Autora:Angie Gomes Biondi
Orientador: Paulo Bernardo Ferreira Vaz
Coorientador:Moisés Adão de Lemos Martins 
Programa de Pós-graduação em Comunicação Social Defesa em setembro de 2013