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Nº 1890 - Ano 41
02.02.2015

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opiniao

O corpo e as novas catedrais

Marcos Pinheiro*

Novas formas de culto têm tomado o lugar do fenômeno religioso, muitas vezes considerado obsoleto em nossa sociedade. Os processos de secularização passados e os que ainda vivemos tiveram papel preponderante na “envergadura da vara”, chegando a outros extremos da expressão religiosa. Durante anos a fio, ao se negar a religião como domínio social válido para a formação sociocultural da identidade do indivíduo, passou-se rapidamente de um mundo desencantado para um mundo totalmente reencantado.

O forte ceticismo preponderante nas últimas décadas e as duras críticas às religiões institucionalizadas deram lugar a uma pulverização do crer e das identidades religiosas. Religiosidades fluídas – “à la carte” – , crenças relativas, entre muitas outras novas elaborações sincréticas, podem hoje ser facilmente encontradas. Decepcionados com a racionalidade científica – ameaçada pelo peso da responsabilidade de conferir sentido à existência humana, antes atribuição das religiões –, os indivíduos migraram para outras esferas capazes, ainda que momentaneamente, de responder às questões mais profundas da alma. Como nos lembra Daniele Hervieu-Léger, a crença não desaparece, ela se desdobra e se diversifica, em menor ou maior grau, em cada cultura, rompendo com enquadramentos institucionais.

A principal característica observável nesse sentido talvez seja a tendência geral à individualização e à subjetivação da crença. Paradoxalmente, encontramos pequenos grupos e comunidades maiores fundadas por afinidades sociais, culturais, esportivas ou espirituais entre membros. As redes sociais na internet são bons exemplos desse fenômeno. Sozinho, ou em pequenos grupos, sem muito compromisso institucional, o indivíduo sai ao mundo buscando respostas para seus anseios de vida.

Nessa busca, ele esbarra em muitas possibilidades de respostas às questões existenciais que vão da “nebulosa mística-esotérica” ao consumismo. No consumismo,as pessoas descobrem novos sentidos para sua existência, amparando-se no ter, no possuir, verbos que representam promessas sedutoras de satisfação e felicidade. E isso vale também para o fato de se “ter uma fé”, “possuir uma religião”, entre outros desdobramentos do consumo religioso.

Todavia, ao contrário da racionalidade científica que se reconheceu insuficiente para resolver questões que extrapolavam suas competências, como Z. Bauman nos adverte, o consumismo, em um mecanismo de retroalimentação, consegue criar um estado permanente de insatisfação na sociedade.

Infelizmente, é no corpo que o consumismo encontra seu principal investimento. Seja nos campos da dietética, da cosmética ou da estética, o corpo passa a ser alvo do mercado – e mesmo do mercado religioso com seus shows de “cura” e exorcismos pautados em performances. O corpo vira protagonista e passa a ser alvo do marketing com status de principal ponto de venda das mercadorias de consumo. É ao corpo e ao seu bem-estar que as principais buscas existenciais visam, como nos mostra Z. Bauman. O corpo ganhou um espaço que nenhuma outra entidade ocupou na medida em que se intensificam as sensações buscadas, pois prazeres e alegrias podem nele ser experimentados e vivenciados pelos sentidos.

Utilizando o termo proposto pelo autor, vivemos em uma jihad (termo para a guerra santa do islamismo) pela boa forma, meio de alcançar bem-estar, de ter respostas e anseios de vida (in)satisfeitos. Essa luta, travada principalmente nas pistas de corridas ou em academias de ginástica e musculação espalhadas pela cidade, duram a vida toda e não pode ser vencida, uma vez que não existem padrões objetivos para aferição da vitória: é uma luta sem fim que põe o indivíduo secular e consumidor-consumista como refém do mercado, especialmente do mercado fitness.

As academias e seus congêneres se transformam, dessa maneira, em verdadeiras catedrais, templos para a realização do culto do corpo, além do culto da forma física, da eterna juventude, da “saúde” e da satisfação pessoal. Cultos que possibilitam, mesmo que de forma transitória e superficial, a realização das buscas transcendentes de nossos contemporâneos, pois nas academias podem ser encontrados ritos, liturgias, rituais de passagem, cerimônias de iniciação, bem como excomunhão, sacrifícios e castigos impostos aos pecadores da gula, da gordura corporal saliente ou da falta dela – da obesidade ou da magreza ou de qualquer outro pecado grave do corpo na sociedade atual. Além disso, encontramos os dogmas impostos aos membros de tais comunidades, estabelecidos e reforçados de forma intransigente nas homilias e rezas dos sacerdotes do fitness e seus discípulos e beatas.

Assim, aquilo que se inicia como algo saudável e necessário pode se transformar em carolice fundamentalista, vício e compulsão, como se percebe nos distúrbios de nossa época: vigorexia e anorexia. O medo do envelhecimento assusta, pois ele aponta para um fim mal resolvido da existência, com o qual ainda não sabemos lidar e que, por isso, tememos.

Não se sabe até quando o corpo terá tal protagonismo. A única certeza é a de que outras esferas continuarão a desempenhar o papel de orientação do indivíduo na construção de si juntamente com as religiões, que, mesmo enfraquecidas e desacreditadas institucionalmente, ainda não encontraram substitutos à altura para articular as expe­riências humanas.

Como tem a eternidade no coração, o ser humano jamais conseguirá aprender a lidar de maneira satisfatória com a decadência, com a degeneração física, com o sofrimento e com a morte. Enfim, com o término de sua existência. Prosseguirá na sua busca incessante pelo Absoluto e pelo Eterno.

* Professor do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix. Licenciado em Educação Física e mestre em Lazer pela UFMG