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Nº 1890 - Ano 41
02.02.2015
Itamar Rigueira Jr.
“Só um trecho dela [sua carta] é que me perturbou: aquele em que você dá a entender que não encontrou a paz na religião, porque a paz não é deste mundo. Mas então não sei o que se deva procurar na religião. Se ela não é uma paz máxima e consoladora (...), não seria preferível continuar do lado de cá, sem nenhuma certeza superior e sem nenhuma esperança?”
A inquietação existencial do jovem Carlos Drummond de Andrade (1902–1987) se expressa nesse e em muitos outros trechos da correspondência do poeta mineiro com o crítico literário e intelectual católico Alceu Amoroso Lima (1893–1983), recém-revelada em livro pelo professor Leandro Garcia Rodrigues, da Universidade Católica de Petrópolis (RJ). Drummond & Alceu (Editora UFMG), que contém 132 cartas inéditas, trocadas durante mais de 50 anos – 1929 a 1982 –, oferece a estudiosos da obra de Drummond material valioso da vida cultural brasileira no século 20.
“As cartas cobrem período que abrange o modernismo e o chamado pós-modernismo, contêm impressões sobre as políticas educacionais na gestão de Gustavo Capanema no MEC, durante o Estado Novo, e ainda revelam muito sobre a personalidade de Drummond, famoso pela sua discrição e até por certa reclusão”, destaca o organizador. Ele conta que, ao lançar o livro em Belo Horizonte, em janeiro último, ouviu de uma sobrinha do poeta que ela redescobrira o tio na leitura de Drummond & Alceu.
Um dos poucos especialistas na obra de Amoroso Lima – que era conhecido também pelo pseudônimo de Tristão de Ataíde –, Rodrigues aprofundou-se em aspectos da vida e da trajetória intelectual do crítico e pensador, confirmando indícios de sua mudança de postura nos últimos 30 ou 40 anos. “Ele tem sido negligenciado, em parte por causa do preconceito da academia contra o pensamento marcado pelo catolicismo. Alceu foi muito conservador no início, mas depois chegou a se aproximar da Teologia da Libertação”, ressalta o professor.
A transcrição das cartas ocupou a maior parte do tempo (dois anos) dedicado ao livro organizado por Leandro Garcia, que chegou a estudar paleografia para decifrar os manuscritos de Amoroso Lima. O esforço de contextualização e análise do material levou o pesquisador a dividir a correspondência em três fases. Nos cinco primeiros anos, predominam as questões existenciais, embora a iniciativa de Drummond tivesse motivação literária. O poeta iniciante procurou Alceu, já então crítico consagrado, por sugestão de Mario de Andrade. “Mas já na segunda ou na terceira carta, Drummond se expõe como um jovem deprimido, perturbado. Além de pertencer a uma geração marcada pelo ateísmo dos escritores franceses, ele teve péssimas experiências em colégios católicos de Belo Horizonte e de Nova Friburgo. Não era ateu convicto nem abraçava a religião. E havia perdido um filho”, comenta Rodrigues.
A partir de 1934, as cartas apresentam teor mais profissional, com conteúdo amplamente dominado por troca de informações e impressões entre o chefe de gabinete do Ministério da Educação (Drummond) e o intelectual que ocupou cargo máximo em universidade e presidiu o Conselho Federal de Educação (Alceu). “Os textos trazem à tona informações úteis para historiadores da educação. Quanto aos conflitos íntimos de Drummond, fica a impressão de que foram resolvidos com a mudança para o Rio”, diz Rodrigues.
A terceira e última fase (1945-1982), segundo a cronologia definida pelo organizador da obra, reflete a produção intensa e reconhecida dos dois intelectuais. Além de literatura, Amoroso Lima escrevia sobre sociologia e economia. Os missivistas teciam comentários sobre os livros e artigos publicados na imprensa por ambos. “Eles não tiveram uma relação de mestre e discípulo, mas fizeram de sua correspondência um laboratório de criação e um campo de debate de ideias”, afirma Leandro Garcia Rodrigues.