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Nº 1892 - Ano 41
23.02.2015

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O caminho e a câmera

Tese da Belas Artes mapeia e analisa o filme de estrada latino-americano contemporâneo

Itamar Rigueira Jr.

Por definição, uma viagem tem começo, meio e fim. Inclui a preparação e a partida, os acontecimentos do percurso e a chegada. Não necessariamente, essa rota se aplica ao cinema e, particularmente, aos filmes de estrada latino-americanos contemporâneos. Nessas produções, os personagens continuam suas viagens mesmo depois do “fim”. Não importa se atingiram seus objetivos ou se falharam.

Essa é uma das características encontradas nos filmes de estrada – nove obras de seis países da região, produzidas entre 1990 e 2010 – analisados pela jornalista e pesquisadora Mariana Mól Gonçalves, que defendeu tese na Escola de Belas Artes. Ela deparou com “sujeitos de suas próprias trajetórias”, pessoas de carne e osso, envolvidas em tramas simples, mas de alcance profundo.

Mariana Mól se debruçou sobre filmes de Brasil, Argentina, México, Uruguai, Equador e Cuba, além de Diários de motocicleta, de Walter Salles, produção que a autora do trabalho classifica de “pan-americana”. Depois de uma revisão bibliográfica em que reconhece a influência do road movie consagrado nos Estados Unidos e de destrinchar as características históricas do cinema na América Latina, a pesquisadora dividiu os filmes de seu corpus em três grupos, de acordo com suas características mais fortes.

Motivação mínima

O primeiro bloco se destaca pelos “relatos mínimos”: questões humanas tratadas de forma singela em encontros e desencontros que seguem a lógica do tempo da viagem. “Esses deslocamentos não têm um objetivo grandioso, a motivação pode ser a vontade de seis amigos de ver o mar pela primeira vez”, exemplifica Mariana, referindo-se a El viaje hacia el mar, de Guillermo Casanova (Uru/Arg, 2003). Segundo ela, esse grupo apresenta uma característica comum a todos os filmes estudados, que é a produção enxuta, com aproveitamento máximo de recursos. Viajo porque preciso, volto porque te amo, de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz (Bra, 2009), e Histórias mínimas, de Carlos Sorín (Arg/Esp, 2002), completam o bloco.

Se o road movie clássico é feito de carro ou moto, por uma ou duas pessoas, nos longas analisados as viagens envolvem muitas vezes mais gente, e os meios de transporte são variados – bicicleta, ônibus, caminhão, e há também quem vá a pé ou de carona. Família rodante, de Pablo Trapero (Arg/Bra/Esp, 2004), reúne 12 parentes em uma casa sobre rodas e expõe questões de gênero e geracionais. “O segundo bloco agrupa filmes com relações familiares mais intrincadas, também pautadas pela coprodução. Tendo mulheres como protagonistas, essas produções exploram com mais intensidade trilhas sonoras identificadas com o país onde a trama se passa”, explica Mariana Mól. O grupo é composto ainda de Guantanamera, de Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío (Cub/Esp/Ale, 1995), e E sua mãe também, de Alfonso Cuarón (Méx, 2001).

Os três últimos filmes explorados por Mariana Mól simbolizam com mais intensidade um tipo de produção carregado de realidade. A pesquisadora lembra que o cinema latino-americano é herdeiro do Neorrealismo italiano, que mostrou a Europa destruída do pós-guerra, filmada do lado de fora. “Os cineastas daqui usam o espaço físico como elemento de realidade. E o realismo do conteúdo contagia a forma, ou seja, o modo de produção, baseado muitas vezes, por exemplo, no registro que mistura o documental e o ficcional”, ela comenta. Esse bloco é formado por Cinema, aspirina e urubus, de Marcelo Gomes (Bra, 2005), Que tán lejos, de Tania Hermida (Equ, 2006), e Diários de motocicleta (vários, 2004).

A obra de Walter Salles, que levou para as telas a viagem do jovem Ernesto Guevara com seu amigo Alberto Granado, sintetiza, de acordo com a pesquisadora, o perfil do filme de estrada latino-americano contemporâneo. “Sob o impacto de paisagens grandiosas, dois jovens entram em contato com índios, agricultores e outros explorados, e, por meio da viagem, tomam consciência da realidade. O filme mostra que toda viagem é transformadora”, afirma Mariana Mól.

Tese: Filmes de estrada e América Latina: caminhos de uma estética e narrativa própria
De Mariana Mól Gonçalves
Orientadora: Ana Lúcia Andrade
Defendida em agosto de 2014, no Programa de Pós-graduação em Artes da Escola de Belas Artes