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Nº 1896 - Ano 41
23.03.2015

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opiniao

E nós?

*Renato de Lima Santos*

Em 7 de março de 1965, um grupo de mais de 500 manifestantes pacíficos participaram de uma marcha que saía da pacata cidade de Selma, no Alabama, nos Estados Unidos da América, em direção à capital do estado, Montgomery. O propósito da mobilização era a busca, pela comunidade afrodescendente, do exercício de seu direito constitucional ao voto. Ao deixar a cidade, atravessando uma ponte sobre o Rio Alabama, os manifestantes foram violentamente combatidos pela polícia, resultando em agressões que provocaram a hospitalização de vários deles.

No último dia 7 de março, 50 anos depois da histórica marcha de Selma, em um belo discurso, o presidente Barack Obama deu uma aula de patriotismo e de democracia durante a celebração dos eventos ocorridos há meio século, que ficaram conhecidos como Bloody Sunday [Domingo sangrento]. Após emocionante apresentação pelo deputado John Lewis, que há 50 anos foi um dos líderes daquele movimento histórico, Obama, primeiro presidente afrodescendente, descreveu com incrível clarividência os alicerces do caráter e do espírito coletivo americano.

Foi um discurso emocionante. Certamente um dos mais densos e consistentes da história da presidência dos Estados Unidos da América. Com perfeita harmonia retórica, ele delineou os progressos alcançados nos direitos civis e no respeito às minorias, em meio a repetidas manifestações sobre a importância de ações bipartidárias para os avanços no campo dos direitos civis. Com desprendimento, Obama exercitou a autocrítica, deixando claro que o sonho americano é um projeto em construção e em permanente aperfeiçoamento. Ao mesmo tempo, reconhecia o mérito de republicanos e democratas, tendo como ouvinte seu antecessor, George W. Bush.

‘Não me é facultado o julgamento sobre os valores americanos, tampouco qualquer comparação direta com o Brasil, cuja complexidade torna comparações com outros países inerentemente precárias.’

Imediatamente descrito pela imprensa americana como uma carta para as gerações futuras, o brilhante discurso progrediu para um final marcante em que o presidente usou a célebre expressão do documento maior de fundação dos Estados Unidos da América: We the People.

Em meio aos retumbantes aplausos da multidão que testemunhava aquela celebração às margens do Rio Alabama, tendo como pano de fundo a Ponte Edmund Pettus, palco do trágico evento de 50 anos atrás, logo ao final do já célebre discurso, retornei gradualmente à realidade. Vi-me reimerso em nossa situação atual, de profunda crise política e econômica. Poderia o brasileiro mais pessimista imaginar, há um ano, que hoje viveríamos uma situação de imensas dificuldades econômicas e políticas, que colocariam o país à beira da ingovernabilidade?

Nesse cenário conturbado, a UFMG, como as demais universidades públicas federais, vê seu planejamento institucional desmoronar frente a restrições orçamentárias brutais. Tal situação escancara a extrema fragilidade do que se convencionou chamar de autonomia universitária.

Não me é facultado o julgamento sobre os valores americanos, tampouco qualquer comparação direta com o Brasil, cuja complexidade torna as comparações com outros países inerentemente precárias. Contudo, a forma como o presidente Obama delimitou e definiu com absoluta clareza os alicerces do espírito americano me fez buscar em pensamento os alicerces do caráter coletivo do brasileiro. De pronto me vi envolto em tormentosos pensamentos. Onde esses alicerces estariam? O que nos une? Quais os elementos essenciais que forjam o nosso caráter?

De volta ao Brasil de hoje, observamos diariamente a progressão de uma situação patética de disputas partidárias que têm assumido prioridade muito maior que as grandes questões de interesse coletivo. A flagrante deterioração ética de algumas de nossas lideranças, em meio a recorrentes episódios de acusações, desrespeito e dedos em riste, mesclados à permanente e absoluta ausência de autocrítica, além de evidências de corrupção generalizada na relação entre partidos e membros da classe política com empresas públicas e privadas, visando ao financiamento de campanhas políticas e ao enriquecimento ilícito, tem projetado um período sombrio para o futuro próximo de nossa Nação. De volta a nossa questão central: não posso admitir que nossos valores fundamentais, que nos caracteriza coletivamente como brasileiros, deem estruturação a um cenário de cleptocracia!

Obama termina seu brilhante discurso com a palavra we [nós], que poderosamente resume a unidade do pensamento coletivo americano em relação à defesa e ao aperfeiçoamento de seus valores fundamentais. Voltando à nossa realidade – e nós? Onde estão ancorados os valores que definem nosso caráter coletivo?

*Professor titular da Escola de Veterinária da UFMG