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Nº 1896 - Ano 41
23.03.2015

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‘Tecido em que se pode bordar nada’

Tese da Letras mostra como Machado de Assis, em seus romances, faz do niilismo motivo de galhofa

Itamar Rigueira Jr.

Marc-Ferrez (1899) / France Diplomatie
Rio de Janeiro, no fim  do século 19: cenário do viés irônico e galhofeiro presente na obra de Machado de Assis
Rio de Janeiro, no fim do século 19: cenário do viés irônico e galhofeiro presente na obra de Machado de Assis

A visão de Dostoiévski sobre os niilistas inspira o título do romance Os demônios, de 1872. Anarquistas e terroristas, os personagens do escritor russo incendeiam uma cidade, destroem casas e matam pessoas. Em crônica publicada na Gazeta de Notícias, em 1885, Machado de Assis leva um revolucionário russo, armado com bombas, a confundir um baile com uma reunião secreta no Rio de Janeiro, e o personagem termina a noite dançando.

O filósofo Vitor Cei, que acaba de defender tese na área de estudos literários, conta essa história para ilustrar a forma como Machado de Assis tratou o niilismo em sua obra: pessimismo e descrença como filosofia de vida foram motivo de galhofa na pena do romancista carioca. Para o autor, Machado “conjuga filosofia e literatura de tal forma que conteúdo filosófico e forma literária tornam-se indissociáveis”.

“Desde o século 19, os críticos acusam Machado, ou sua obra, de niilismo. No entanto, não havia um estudo mais profundo e sistemático sobre o tema”, afirma Vitor Cei. “Ele tinha consciência aguda da complexidade desse problema filosófico do século 19 e o discutiu, mas não era, ele próprio, niilista. Seus personagens que apresentam essa característica nada tinham de exemplares, não inspiravam respeito ou admiração, eram antes desprezíveis e risíveis.”

O pesquisador ressalta que pensar o niilismo em Nietzsche ou em Dostoiévski não é a mesma coisa que analisar a questão em Machado de Assis. Ele lembra que o próprio Nietzsche apontou diferenças entre o niilismo europeu, o russo e o do budismo, por exemplo. “A influência europeia no Brasil não impediu que o niilismo tivesse características próprias por aqui. Eram realidades diferentes, e as histórias de Machado refletiram isso”, afirma Vitor Cei.

Ele revela que Machado de Assis faz referência ao pessimismo presente na Bíblia, sobretudo no livro de Eclesiastes, e que o escritor leu Pascal, filósofo cristão, e Schopenhauer, que para Nietzsche exerceu grande influência sobre os russos. “Machado mostra como o pessimismo de Pascal leva ao niilismo e, claramente, não leva o pessimismo de Schopenhauer a sério”, diz o autor da tese.

Metáforas

Vitor Cei analisou cinco romances de Machado de Assis, que dividiu em dois grupos. Quincas Borba (1891) e Esaú e Jacó (1904), escritos em terceira pessoa, têm em comum a força do contexto, em tempos de modernização do Rio de Janeiro. O niilismo aparece na forma do esgotamento ou da negação de valores, relacionados ao fim da sociedade escravista, à passagem para o capitalismo e ao surgimento da divisão de classes, de acordo com o autor.

Nos outros três romances – Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), Dom Casmurro (1899) e Memorial de Aires (1908) –, o ­pesquisador encontrou o niilismo nas memórias dos narradores. “No caso de Bento Santiago, de Dom Casmurro, a característica aparece na forma de ressentimento, da necessidade de transferir a culpa para o outro. O Conselheiro Aires, do último romance de Machado, por sua vez, tem poucas relações de amizade e é incapaz de amar, embora seu ascetismo seja bem-humorado”, explica Vitor Cei.

O pesquisador observa também que, em seus romances, Machado não fala explicitamente em niilismo. Ele usa e abusa das metáforas. “A voluptuosidade do nada”, que Cei incorporou ao título de sua tese, está em Memórias póstumas; “o prazer das dores velhas” ajuda a descrever o espírito de Bentinho; “a vida é um ofício cansativo” traduz à perfeição o caráter do Conselheiro Aires. Em Quincas Borba, Machado oferece pérolas como “arquitetura de ruínas” e “o naufrágio da existência”. De Esaú e Jacó, por fim, o autor da tese destaca a passagem “o tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo, uma flor, um pássaro, uma dama, um castelo, um túmulo. Também se pode bordar nada. Nada em cima de invisível é a mais sutil obra deste mundo, e acaso do outro”.

Tese: A voluptuosidade do nada: o niilismo na prosa de Machado de Assis
De Vitor Cei
Orientador: Marcus Vinicius de Freitas
Defesa em 26 de fevereiro de 2015 Programa de Pós-graduação em Estudos Literários, da Fale