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Nº 1904 - Ano 41
18.05.2015
Hugo Rafael
As ditaduras sul-americanas instaladas nos anos 1960 e 1970 do século passado foram violentas, repressivas e, ao mesmo tempo, modernizantes. No entanto, a modernização promovida por elas teve caráter autoritário e elitista, gerando distorções econômicas e sociais. Essa distinção, fundamental para se compreender os grupos que sustentaram os regimes e as próprias disputas contemporâneas pelas representações e pela memória desses períodos, é o eixo condutor do livro Ditaduras militares: Brasil, Argentina, Chile e Uruguai, organizado pelo professor Rodrigo Patto Sá Motta, do Departamento de História da Fafich, recém-lançado pela Editora UFMG.
“Muitas discussões têm surgido com o objetivo de entender a ditadura além da política repressiva e da resistência armada, olhando para as políticas sociais, culturais, educacionais, de memória, com a intenção de compreender melhor e de forma mais abrangente as estratégias de legitimação desses estados autoritários. O poder deles não se baseou apenas na repressão política”, contextualiza Rodrigo Sá Motta.
A ideia do livro surgiu em 2012, durante seminário internacional realizado na UFMG. Na obra, estão reunidos artigos de pesquisadores brasileiros, argentinos, chilenos e uruguaios, especialistas na história de ditaduras recentes, como Marina Franco, da Universidade Nacional de San Martín (Argentina), e Verônica Valdívia Ortiz de Zárate, da Universidade Diego Portales (Chile). “É uma coletânea que contempla discussões consolidadas na esfera acadêmica, mas também inaugura novas linhas de reflexão, principalmente por meio da análise comparativa”, explica Rodrigo Sá Motta.
Outra premissa trazida pelo livro é a de que, embora as lutas contra os governos ditatoriais na América do Sul há muito tenham sido vitoriosas, reflexos desses conflitos ainda podem ser vistos nos dias de hoje, influenciando, por exemplo, os processos eleitorais e as posições acerca dos procedimentos judiciais em relação aos crimes cometidos pela ditadura.
A questão da memória é discutida pelos professores Daniel Aarão Reis Filho, da Universidade Federal Fluminense (UFF), e Ludmila da Silva Catela, da Universidade Nacional de Córdoba (Argentina). “Isso é pleno de atualidade. No Brasil, ficou mais evidente após os protestos políticos de março e abril. Pessoas foram às ruas defender a volta dos militares ao poder, o que mostra essa disputa pelos sentidos. Para algumas pessoas, a ditadura significou algo positivo. Para outras, a maioria, uma experiência negativa”, destaca o historiador.
Na obra, as políticas universitárias das ditaduras são abordadas por Rodrigo Sá Motta e por Laura Graciela Rodríguez, da Universidade Nacional de La Plata (Argentina). Durante o regime militar, houve significativo crescimento da infraestrutura das universidades públicas brasileiras, com expansão de vagas, organização da carreira docente e fomento à pesquisa e à pós-graduação. De acordo com o professor, o caso brasileiro é bem distinto das experiências dos países vizinhos. “No Brasil, os militares fizeram a reforma universitária, enquanto em Argentina, Chile e Uruguai, ela foi empreendida por governos democráticos, antes das intervenções militares. Mas isso não nos deve levar a crer que, em função disso, a ditadura brasileira se justifica. É preciso entender por que isso aconteceu”, diz ele. Quando os militares tomaram o poder no Brasil, lembra o historiador, as universidades eram frágeis e “não havia o que destruir”. Nos outros países, por sua vez, essas instituições eram mais sólidas e influentes no debate político.
“No Brasil, os militares perceberam que, se não houvesse investimento, principalmente visando à formação de técnicos, a economia brasileira ficaria travada. Era necessário contar com universidades produtivas capazes de desenvolver tecnologias em prol do crescimento econômico. Mas a lógica econômica foi apenas um dos fatores. Houve também um cálculo político: investir nas universidades como estratégia para aplacar a crítica e os opositores, buscando um campo de acomodação com os intelectuais”, ressalta.
A perspectiva comparativa exercitada em artigos da obra ajuda a perceber, além das singularidades políticas entre os países sul-americanos, diferenças em relação ao perfil econômico dos governos autoritários. “A ditadura brasileira foi claramente desenvolvimentista, com alta intervenção do Estado na economia. O extremo oposto foi a ditadura chilena, com sua política liberal que reduziu a interferência do Estado nas relações socioeconômicas. No Brasil, por exemplo, a ditadura ampliou o sistema previdenciário público, que chegou ao campo, enquanto Pinochet privatizou a previdência no Chile”, afirma.
No campo das semelhanças, pode-se destacar o objetivo das ditaduras, como demonstram outros artigos. “Os objetivos ideológicos eram similares: acabar com a esquerda e manter a ordem social tradicional. Os grupos apoiadores tinham o mesmo perfil, sem falar dos militares que constituíam os núcleos centrais de poder”, destaca.