Diversidade

Comunicação e mobilização em saúde: da propaganda à interlocução

Márcio Simeone Henriques
Professor do Departamento de Comunicação Social da UFMG

A utilização do termo mobilização social em saúde comporta diversos sentidos. A expansão do seu uso faz suspeitar que acepções bem diferentes das tradicionais se encontram hoje em curso. Por exemplo, num sentido trivial, por vezes aplicado no campo da epidemiologia, carrega o significado de uma movimentação intensiva para debelar fatores que concorrem para a expansão de epidemias e prevenir a ocorrência de novos casos de determinadas doenças. A idéia de mobilização, nesta ótica, aproxima-se do sentido bélico do termo, o de movimentar tropas de um exército. Com freqüência vetores dessas epidemias, como o mosquito Aedes aegypti, são publicamente apresentados como inimigos a serem vigorosa e persistentemente combatidos, numa verdadeira “cruzada”.

A comunicação para esse processo de mobilização social é entendida tradicionalmente em termos instrumentais, como campanha – palavra que também evoca o sentido bélico, de esforços concentrados e intensivos de combate. Reveste-se do caráter de exceção – como na guerra a suspensão de rotinas da vida ordinária, para fazer convergir atenções e ações – e utiliza-se de técnicas de propaganda à semelhança da propaganda de guerra, que alimenta e justifica a excepcionalidade.

Embora persistam ainda hoje o emprego dessa noção tradicional e o uso da comunicação que a ela corresponde pela urgência no trato com surtos epidêmicos, alguns fatores contribuem para torná-la insuficiente. Muito por obra da perplexidade causada pelas epidemias contemporâneas – a de aids é um importante ponto de inflexão – e, dentro dessas novas circunstâncias, da emergência de abordagens no campo da epidemiologia. Novas preocupações não se resumem à pontualidade das ocorrências, mas se estendem por um longo curso de eventos problemáticos a exigir a junção de constante vigilância, em curto prazo, com aspectos culturais e educacionais para mudança de hábitos, em longo prazo.

Os quadros epidêmicos em seu conjunto também contribuem para a virada de sentido e mudam as demandas de comunicação, ao inserirem a noção de risco não mais como possibilidade de dano eventual, mas como ameaça permanente de desestabilização. A subjacente noção de crise como regra – e não como exceção – faz grande diferença na composição de estratégias de ação e de comunicação, nesse contexto. A visão de continuidade no tempo e de longo prazo contrasta fortemente com a temporalidade mais curta – por vezes excessivamente curta – das urgências do combate epidemiológico. Na perspectiva de longo curso, a noção de mobilização ultrapassa o caráter pontual e se abre para a necessidade de compartilhar responsabilidades coletivas, de articular atores co-responsáveis, pessoas ou instituições, cujas ações sejam minimamente coesas e contínuas. Isso ocorre dentro de um vastíssimo conjunto de questões públicas relativas às condições sanitárias, segundo noções ampliadas de saúde que extrapolam a idéia de terapêutica.

O esforço de coesão, contudo, luta constantemente contra forças dispersivas e fragmentadoras, em termos de conhecimento e de práticas, e lida ainda, agora em caráter permanente e não mais eventual, com a tensão entre as dimensões privada e pública da saúde. A notória demanda por abordagens interdisciplinares e intersetoriais traz o imperativo de reunir visões e ações que, dado o alto grau de divisão de trabalho em sociedades contemporâneas, torna-se tarefa extremamente complexa. Decorre disso tudo, de um lado, a demanda por arregimentação de inúmeros recursos e, de outro, a conjugação de esforços, de modo engenhosamente coordenado, a partir da proposição pública de causas comuns relativas à saúde, o que sai de um âmbito predominantemente técnico e administrativo para a dimensão essencialmente política que envolve a formulação de acordos em torno do que se considera de interesse público. Nesta dimensão, as principais questões devem estar expostas a permanente discussão e debate.

Não é difícil perceber que o entendimento ampliado de mobilização social requer uma mudança nas formas como a comunicação é compreendida e sobre as funções que assume. Muito diferentes de uma prática de difusão e de propaganda e mais voltadas para estabelecer interlocuções e gerar e manter vínculos. Há nessa visão uma clara aposta em estratégias de comunicação que consigam a um só tempo posicionar amplamente os múltiplos riscos em ambiente de insegurança e tecer relações relativamente estáveis em meio às contínuas ameaças – o que está implícito nas idéias de coesão e de continuidade.

O desafio é lidar com os inúmeros dispositivos de comunicação contemporâneos e compor estratégias não apenas para propiciar o provimento de informações sobre as principais questões sanitárias publicamente relevantes, como também para criar ambientes propícios às conversações cívicas, prover as necessidades de informação qualificada, oferecer suporte às interconexões e interações institucionais em rede, estimular a participação e a cooperação dos cidadãos e contribuir para a manutenção de vínculos entre os diversos atores, buscando assegurar a coesão necessária ao próprio processo de mobilização.

A aposta é, evidentemente, alta. Tudo isso envolve os processos comunicativos em um amplo leque que vai da dimensão mais espontânea e trivial da comunicação até a sua dimensão mais especializada, que perpassa a lógica e o modus operandi dos meios de comunicação. Tomando este sentido – ou possibilidades de vários sentidos – a mobilização social é essencialmente um processo comunicativo e reveste-se de um caráter aberto e de alto grau de incerteza, já que depende de amplas interlocução e interação, em vários graus de mediação. A comunicação deixa, portanto, de ser algo externo ao processo mobilizador e comporta um enorme desafio para a gestão pública em saúde, assim como para todos os aspectos de nossa vida em sociedade.

 


Revista Diversa nº 16
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