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Lei de Cotas – Passos em Função da Igualdade

30 de agosto de 2022

 

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“A abolição da Escravatura foi, na verdade, uma condenação perversa dos africanos e seus descendentes brasileiros, pois, implicou num futuro de humilhações, falsa cidadania e exclusão.” Abdias do Nascimento  

 

O Brasil não apenas foi um dos últimos países da América Latina a abolir o tráfico de africanos para escravização, como também o que mais importou mão de obra escrava africana. Ainda que o documento assinado pela princesa Isabel indicasse “É declarada extinta a escravidão no Brasil “, simplesmente desfazer esse trato cruel, sem conceder compensações financeiras ou concessão de terras por todos os anos de trabalho forçado e gratuito, estabeleceu e aprofundou diferenças sociais que hoje ainda prejudicam pessoas negras. 

 

Créditos: Free Images

 

300 anos de escravidão trouxeram consequências excludentes, afinal, a ‘libertação’ jogou os ex escravizados diretamente no desemprego e na falta de moradia. Poucos eram os negros alfabetizados, suas práticas religiosas e culturais eram coibidas pela legislação e o preconceito pela cor não deixou de existir apenas pela assinatura de um papel. Negros ainda eram vistos como escravizados e não como pessoas. Como mercadoria, não tinham direitos, eram vistos apenas como objeto de uso. 

 

Teoricamente, 132 anos separam este período até os dias de hoje, mas na prática, ainda temos uma parcela significativa de pessoas negras morando em regiões distantes dos centros urbanos, muitas vezes sem acesso a itens comuns aos cidadãos, como educação, cultura, lazer ou, até mesmo, saneamento básico. Foram poucas as políticas públicas com pretensões de tornar menor esse abismo entre brasileiros brancos e negros, pelo contrário, as leis estabelecidas acabavam criminalizando as pessoas negras por toda ou qualquer ação delas:


Lei contra feiticeiros – 1805 – era proibido o uso de objetos católicos para celebrar outra fé, a ironia é que os negros também não podiam usar seus próprios aparatos religiosos para professar suas religiões africanas. 


Lei de terras – 1850 – a terra para cultivo e moradia só poderia ser apropriada por venda, os negros não tinham dinheiro, portanto, não tinham terra.


Lei do Ventre Livre – 1871 – os filhos das escravizadas eram libertos, porém, precisavam da mãe para cuidar, então acabavam sendo usados como mão de obra gratuita mesmo assim.


Lei do Sexagenário – 1885 –  previa a libertação dos escravos a partir dos 60 anos, mas a expectativa de vida não passava de 30 anos.


Alvará para terreiros – 1972 – lei da Bahia que obrigava terreiros de Umbanda e Candomblé a conseguirem autorização de uma delegacia específica para funcionamento, sendo que nenhuma igreja jamais precisou de autorização para acolher os fiéis.

 

Após muita luta dos movimentos antirracistas, principalmente através das pressões e ações do Movimento Negro Brasileiro, foi dado prosseguimento às demandas educacionais formuladas pelas primeiras entidades negras de repercussão nacional, como a União dos Homens de Cor (UHC) de 1943, denunciando a falta de pessoas negras nas universidades brasileiras e em outros espaços de tomadas de decisão e poder. 

 

“Em 1993, o percentual de indivíduos brancos que frequentava ou havia frequentado o ensino superior era de 11,2%, ao passo que no caso dos negros esse percentual era 4 vezes menor (2,8%) (KARRUZ, 2018, p. 410)”


No governo de Fernando Henrique Cardoso (na década de 1990), finalmente as discussões raciais começaram a ser abertas a amplas camadas da sociedade. Até que no dia 29 de agosto de 2012, a lei 12.711/2012, a Lei de Cotas entrou em vigor. A lei prevê que metade das vagas nos ensinos superiores e técnicos sejam reservadas para estudantes do ensino público, sendo que essa parte é dividida entre estudantes de baixa renda e a outra entre candidatos negros, indígenas e pessoas com deficiência. 

 

Art. 1º As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.

 

Parágrafo único. No preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo, 50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita 

 

Art. 3º Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. (Redação dada pela Lei nº 13.409, de 2016).

 

Essa política tornou possível que muitos brasileiros finalmente pudessem ingressar no ensino público, muitos sendo os primeiros de suas famílias a ter acesso a um curso e um diploma de nível superior. O acesso a oportunidades de ampliação de visões culturais, possibilidade de ascensão social, ou simplesmente, a experiência universitária, pertenciam majoritariamente a um tipo de corpo e classe social bem mais alvo e abastado. Para um país cujos níveis de desigualdade social são discrepantes, ações como a lei de Cotas podem ajudar a reparar esse abismo, oferecendo possibilidades de crescimento social e financeiro, até que, finalmente, os grupos sociais possam se equiparar e daí sim, haver um tratamento justo para todos.

 

Créditos: Unsplash

 

De 2012 a 2017, a proporção de pessoas com renda familiar per capita de até cinco salários mínimos também se tornou predominante, passando de 48,5% para 54,1%. No primeiro semestre de 2018, a categoria de renda familiar mais frequente na UFMG foi a de dois a cinco salários mínimos, correspondente a 35,7% dos estudantes[..] – (Revista Diversa 2019)

 

Além de ser um ganho para as universidades, afinal, a diversidade de perfis torna o ambiente acadêmico plural, trazendo novas possibilidades de pesquisa, pois cada estudante traz consigo suas experiências e interesses. E estudos já provaram que o desempenho dos alunos cotistas é equivalente aos alunos de ampla concorrência e, em determinadas áreas, chega a ser superior, como indica uma pesquisa feita pela Fundação Mendes Pimentel (FUMP), órgão responsável por assistir aos estudantes da UFMG: 

 

No curso de história, por exemplo, a média das notas dos cotistas é 89% maior do que quem entrou pela ampla concorrência. Em ciências da computação, a nota deles é 58,14% maior. Na engenharia de controle e automação, 52,94% e, em medicina, a nota dos cotistas é 50% melhor. – (Junia Oliveira – Estado de Minas  01/05/2015)

 

Entretanto, apesar de 10 anos de implementação da lei, certa desinformação ainda está atrelada a ela. Alguns, por ainda terem um ideal meritocrático, têm o pensamento equivocado de que a lei é discriminatória ou segregatória, já que acreditam que as pessoas só recebem aquilo que se esforçam para ter. O que não é uma verdade completa, visto que historicamente, pessoas negras sempre estiveram subjugadas a condições de pouco acesso à educação e a cultura, residindo em regiões periféricas e expostas a condições de violência, essa ideia de ‘fazer e merecer’ não é possível de ser aplicada na vida real da maneira imaginada.

 

Créditos: Unsplash

 

A pretensão de determinados grupos é retirar o caráter racial da lei, demonstrando, no mínimo, uma ligeira falta de conhecimento da mesma (uma vez, que ela abarca não só negros e pardos, como pessoas de baixa renda, indígenas e Pessoas com Deficiência), e no máximo um discurso disfarçado de que “não há racismo no Brasil” e “somos todos iguais”. 

 

É um momento crucial e toda a população brasileira deve estar atenta para que não haja a possibilidade de que se perca esse direito tão importante para todos. Em 2022, após 10 anos por um caráter previsto na própria lei, ela passará por uma revisão e há parlamentares dispostos a diluir ou até mesmo extinguir o programa. Embora, por um aspecto legislativo, a Lei de Cotas não possa ser desfeita, sem que outra lei a substitua, os esforços, tanto da comunidade acadêmica, quanto em geral, devem ser para o ampliamento e permanência dos estudantes. 

 

A Lei de Cotas se provou capaz de oferecer sonhos e oportunidades, enquanto refaz um pouco da dívida profunda que o país tem para com os afrodescendentes. Precisamos de mais políticas inclusivas e reparadoras, a fim de continuar que as instituições públicas, sejam para todas e todos.

 

[Texto de autoria de Juliana Cristina Lopes Cavalli, aluna do curso de graduação em Letras e estagiária do Núcleo de Ações Educativas, Acessibilidade e Estudos de Público]

 

Referências e para saber mais!

ARAÚJO, Ana Rita. É a cara do Brasil. Boletim. No 2.043 – Ano 45 – 3 de dezembro de 2018. Disponível em: https://ufmg.br/comunicacao/publicacoes/boletim/edicao/2043/e-a-cara-do-brasil.  Acesso em 09/08/2022.

BAPTISTA, Rodrigo. Lei de Cotas tem ano decisivo no Congresso. Agência Senado. Publicado em 11/2/2022. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2022/02/lei-de-cotas-tem-ano-decisivo-no-congresso.  Acesso em 09/08/2022.

GODOI, Marciano Seabra de; SANTOS, Maria Angélica dos. Dez anos da lei federal das cotas universitárias: avaliação de seus efeitos e propostas para sua renovação e aperfeiçoamento. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 229, p. 11-35, jan./mar. 2021. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/229/ril_v58_n229_p11

GOMES, N. et al.Ações Afirmativas de Promoção da Igualdade Racial na Educação: lutas, conquistas e desafios. Educação & Sociedade [online]. 2021. https://doi.org/10.1590/ES.258226

LEI Nº 12.711, DE 29 DE AGOSTO DE 2012 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm.

NASCIMENTO, A; NASCIMENTO, E, NASCIMENTO. Reflexões sobre o movimento negro no Brasil, 1938 – 1997. In: GUIMARÃES, A; HUNTLEY, L. Tirando a máscara: ensaios sobre racismo no Brasil. SP. : Paz e Terra, 2000. P 203 – 235.

Os dez mitos sobre as cotas. https://www.ufmg.br/inclusaosocial/?p=53  Acesso em 23/08/2022.

OLIVEIRA, Junia. Desempenho de cotistas na UFMG é igual ou superior aos demais alunos. Estado de Minas. Postado em 01/05/2015. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/especiais/educacao/2015/05/01/internas_educacao,643018/desempenho-de-cotistas-na-ufmg-e-igual-ou-superior-aos-demais-alunos.shtmlAcesso em 23/08/2022.