Relato de experiências na Universidade
28 de outubro de 2025
Por Yasmin Soares, estudante de Relações Públicas e bolsista do Programa de Apoio à Inclusão e Promoção à Acessibilidade (PIPA-UFMG) no Espaço do Conhecimento UFMG
“O ensino médio pós-pandemia foi muito difícil para mim. As aulas voltando, o Instituto Federal estava mais que atrasado, tudo confuso. Eu já estava cansada, ansiosa, e ainda tinha que lidar com a adaptação em sala, morar sozinha e passar de ano.
Por isso, resolvi dar um ano de pausa para estudar para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e, com calma, tentar entender o que eu realmente queria cursar. A museologia me chamava muita atenção e não é à toa que hoje estou em um museu, lugar que sempre amei desde criança. Nesse período, fiz terapia semanal, acompanhamento com psiquiatra, porque passei por situações difíceis no ensino médio.
No terceiro ano do médio, tinha sido diagnosticada com transtorno de personalidade borderline. Mas não batia. Conversando com minha psicóloga e refletindo sobre comportamentos que tenho desde a infância, percebi que o diagnóstico estava errado. Eu tinha amigos autistas com diagnóstico tardio, conversava muito com eles, e percebi aos poucos que eu também era autista. Sempre existia essa dúvida em mim, por conta de comportamentos atípicos e identificações com outras pessoas autistas. Testes neuropsicológicos confirmaram: autista nível 1 com TDAH. Comecei a me reconhecer, me tratar, me respeitar. Sim, tenho limitações, mas consigo fazer as coisas do meu jeito. Às vezes de um jeito diferente… outras vezes igual aos demais… e tudo bem.
Em janeiro de 2023, meu diagnóstico oficial chegou. E eu pensei ‘não quero passar pelas mesmas dificuldades do ensino médio’. Agora sei quem sou e quero evitar os erros do passado. Entrei na UFMG pela cota de Pessoa Com Deficiência (PCD). Essa política teve início a partir do SISU 2018, quando a Universidade passou a reservar vagas específicas para pessoas com deficiência, em cumprimento à Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI – Lei nº 13.146/2015), que reconhece o autismo como deficiência. Sei que o suporte ideal não existe para todo mundo, mas via que era uma necessidade.
Escolhi Relações Públicas no último dia do Sistema de Seleção Unificada (SISU), curso com o qual me identificava e chorei demais de alívio e de realização porque há poucos meses não sabia nem se iria me formar ou seguir uma vida não turbulenta depois dos 18 anos. Mas aí veio a espera: seis meses ansiosa porque o curso só começava no segundo semestre de 2024. A greve atrasou o início do semestre ainda mais… foi igual às páginas brancas de Crepúsculo.
A inscrição no processo é feita pelo SISU, e para concorrer pela cota de Pessoa com Deficiência é preciso apresentar laudos médicos e documentos que comprovem a condição. Esses documentos são avaliados por uma banca de heteroidentificação e validação da deficiência, formada por profissionais da área da saúde e servidores da Universidade, que confirmam ou não o direito à vaga. No caso do ENEM, também existe a possibilidade de solicitar atendimento especializado: tempo adicional, auxílio de ledor, intérprete de Libras, salas com menos candidatos, entre outros recursos, dependendo da necessidade de cada estudante.
Durante esses seis meses, me questionava demais: Como será a avaliação da banca? Será que vou conseguir fazer amizades? Estudar? Seguir carreira acadêmica? Minha ansiedade estava lá no teto. Mas aos poucos fui me preparando, pensando nos limites, nas estratégias, no que podia ou não fazer.
Quando finalmente comecei, percebi que o pessoal da Comunicação seguia um padrão muito parecido: grupos bem definidos, gostos em comum, todo mundo se encaixando em dinâmicas próprias. Mas fiz, sim, amizades e elas se tornaram meu apoio total dentro da faculdade. Sou muito grata, principalmente porque me ajudaram a enxergar situações de capacitismo que eu não havia percebido.
Yasmin Soares, à direita, acompanhada de amigas na faculdade. (Créditos: Acervo pessoal, Yasmin Soares).
O tempo foi passando, e fui vivendo a Universidade nas pequenas rotinas do dia a dia. Uma delas é o Restaurante Universitário (RU). Por mais que existam muitos estímulos, ainda assim acho muito legal comer lá. Às vezes pego a marmita também. O que mais marca, na verdade, é um detalhe sensorial meu: eu não suporto comida muito molhada. Preciso sempre dar um jeito de equilibrar com farinha. Então, já virou rotina levantar da mesa para buscar mais, mesmo que seja longe. Teve uma vez em que repeti a cena quatro vezes na mesma refeição. Pode parecer bobo, mas esse tipo de detalhe é parte da minha vivência universitária.
As atividades como bolsista do Programa de Apoio a Inclusão e Promoção à Acessibilidade (PIPA) no Espaço do Conhecimento UFMG foram essenciais. Trabalhar com acessibilidade em museus me dá propósito. É um ambiente que respeita meu espaço e minhas limitações. Aos poucos, aprendi a mediar minha presença: sei até onde consigo ir e sei quando vou precisar me esforçar além do normal. Isso ficou ainda mais claro depois da minha experiência em uma empresa júnior, onde percebi que minhas limitações não eram tão respeitadas. Havia sempre a sensação de não me encaixar completamente. Por isso, estar hoje em um ambiente que trabalha com acessibilidade faz toda a diferença e me oferece um verdadeiro sentimento de pertencimento.
Yasmin Soares em exibição da primeira “Sessão Azul” no Planetário do Espaço do Conhecimento UFMG. (Créditos: Acervo pessoal, Yasmin Soares).
Para aguentar a vida universitária, preciso muito da minha organização, algo que sempre fez parte de mim. Depois do diagnóstico, isso só se intensificou: uso Google Agenda, caderninhos e faço planejamentos estratégicos para tentar não surtar. Claro que nem sempre consigo ter controle de tudo, mas essa forma de me organizar me ajuda a lidar melhor com as situações. É como se eu conseguisse surtar com um pouco mais de calma, porque ao menos sei onde estão meus limites e como posso me preparar.
Existe uma grande quebra de expectativa em relação a quem eu sou, principalmente por conta das minhas expressões sociais. Em situações do dia a dia, costumo ter o rosto neutro, a chamada “cara fechada”, e falo mais quando alguém se dirige a mim. Como também tenho um estilo um pouco alternativo, muita gente acaba criando a imagem de que sou “a gótica misteriosa”. Já ouvi várias vezes colegas dizendo: “antes de conversar com você, eu tinha medo, achava que você ia ficar brava comigo”. No fim, isso acaba sendo engraçado, porque gosto justamente de brincar com essas impressões: por trás da cara fechada, estou rindo, fazendo piadas e me divertindo.
Ainda estou no terceiro período, com muito chão pela frente. Espero continuar tendo boas experiências, superar desafios, cuidar de mim, explorar minhas paixões e sempre manter minha autenticidade. No fundo, o que mais quero é poder viver a Universidade de forma positiva, respeitando meus limites, aprendendo com os erros, me conectando com pessoas que me entendem e ao mesmo tempo, rindo de mim mesma quando a vida me prega peças. É isso que faz tudo valer a pena.
Minha experiência é só uma entre tantas pessoas que vivem com Transtorno do Espectro Autista (TEA), na UFMG ou em outras Universidades. Cada história é diferente, cada jornada tem seus desafios, mas o que quero compartilhar é que existe sim um caminho para passar por tudo isso. Esse relato também é para confortar outros autistas que estão começando ou já estão na Universidade: mesmo que a realidade de vocês não seja igual a minha, há como lidar, avançar e encontrar seu espaço.
É sempre importante não desistir da busca por suporte. Não estamos sozinhos nessa. O Coletivo Autista da UFMG, por exemplo, foi fundamental pra mim. Mesmo eu não estando presente em todos os grupos do WhatsApp, eles ajudaram muito. O Núcleo de Acessibilidade e Inclusão (NAI) da UFMG também é uma ferramenta, mesmo que nem sempre consiga atender a todas as demandas, buscar por eles é essencial. O NAI é o setor responsável por promover condições de permanência e acessibilidade para estudantes com deficiência, incluindo pessoas autistas. Ele atua em várias frentes: adaptações pedagógicas, mediação com professores, acessibilidade física, apoio psicopedagógico e orientação sobre direitos. Embora a demanda seja grande e nem sempre seja possível atender a todos de forma plena, o NAI é um espaço fundamental de acolhimento e suporte dentro da universidade.
E se você passar por alguma situação de capacitismo, não hesite em procurar a ouvidoria da Universidade. Nosso direito ao respeito e à inclusão deve ser sempre preservado. Cada passo que damos em busca de suporte, cada denúncia feita, é uma vitória não só pra gente, mas para todos que vêm depois.
No fim das contas, a Universidade é cheia de desafios, mas também de aprendizados, conexões e conquistas possíveis. A gente vai se encontrando, se descobrindo e percebendo que, apesar de tudo, é possível existir e prosperar do nosso jeito com nossos limites respeitados e nossas particularidades valorizadas.
Planetário do Espaço do Conhecimento UFMG. (Créditos: Acervo pessoal, Yasmin Soares).
E para quem tem curiosidade sobre o que faço como bolsista PIPA: eu sou a pessoa responsável quando recebemos escolas que têm crianças com deficiência, acompanhando de perto para garantir que elas tenham uma experiência positiva e adaptada às suas necessidades. Também desenvolvo oficinas voltadas para o público com deficiência e tive a oportunidade de ajudar a elaborar uma sessão inclusiva no Planetário, pensada para pessoas autistas, a Sessão Netuno. Cada uma dessas atividades me agrega demais porque sinto que contribuo com algo maior e aprendo constantemente sobre como tornar os espaços culturais mais diversos e acolhedores.
A experiência mais recente, durante a Sessão Netuno, me marcou profundamente. Antes da exibição, um pai me procurou com receio de que o filho não conseguisse permanecer dentro da sala por conta do escuro. Expliquei a ele que havia uma transição suave de luz e que, se fosse necessário, sairíamos juntos. Para a nossa surpresa e alegria, a criança não só ficou até o final, como também se encantou com o movimento das estrelas no céu, demonstrando uma felicidade que dificilmente vou esquecer. Esse momento me tocou porque representa exatamente o que desejo fazer: criar experiências em que cada pessoa se sinta pertencente, presente e feliz dentro desses espaços.”