Cosmologias e o Universo de O Senhor dos Anéis – Espaço do Conhecimento UFMG
 
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Cosmologias e o Universo de “O Senhor dos Anéis”

Descubra como J.R.R. Tolkien se inspirou em outras culturas para criar um dos universos literários mais famosos: O Senhor dos Anéis

 

11 de novembro de 2025

 

Por João Victor Lima Evangelista e Eduardo Pinheiro Ferreira, estagiário e bolsista de extensão do Núcleo de Astronomia do Espaço do Conhecimento UFMG, respectivamente

 

O mundo criado por J.R.R. Tolkien é um dos mais complexos da literatura e sobrevive até os dias atuais, inspirando leitores e novas narrativas. Isso se deve não apenas aos seus personagens cativantes e momentos épicos, mas também ao cuidado que o autor teve em criar uma trama de acontecimentos inspirada em muitas outras histórias conhecidas. Visando explicar os motivos que o levaram a desenvolver seu universo literário, Tolkien redigiu uma carta de 10 mil palavras, conhecida como Carta 131, para Milton Waldman, na época presidente da editora Harper Collins, responsável pela publicação dos livros. Essa carta começa com o seguinte trecho:

 

Você solicitou um breve esboço de meu material, em conexão com meu mundo imaginário. É difícil dizer qualquer coisa sem dizer demais” 

 

Nascido em 1892, John Ronald Reuel Tolkien foi um filólogo inglês responsável por criar o universo de O Senhor dos Anéis, um dos mais ricamente expandidos na literatura fantástica, ambientado em um mundo à parte do nosso, com sua própria natureza, física e história. Tolkien, desde criança, nutria uma paixão por histórias de cavalaria e baladas medievais (Beowulf e Sigurd & Gúdrun), cosmologias escandinavas (Kalevala, de Lonnrot e as Eddas, de Snorri Sturluson) e as lendas do Rei Arthur escritas por diversos historiadores (algumas das quais veio a fazer sua própria tradução anos mais tarde).

 

“A Defesa de Sampo”, obra do pintor Akseli Gallen-Kallela, representa parte da história do Kalevala, onde o heroi Väinämöinen luta contra a bruxa transformada em ave Louhi, que tenta recuperar o “O Sampo”, artefato roubado por Väinämöinen. A obra é um ícone do nacionalismo finlandês. (Créditos: Galeria Nacional da Finlandia/Pirje Mykkänen).

 

Tolkien argumenta, em sua carta para Waldman, o potencial de sua obra em retratar a sua terra, a Inglaterra, com uma riqueza não alcançada por outros autores, como Lord Dussany e Andrew Lang, que eram em sua maioria reformulações de narrativas e contos de fada. Ele escreve:

 

“[…] tive uma paixão igualmente básica pelos mitos (não alegorias!) e pelos contos de fadas, e acima de tudo pelas lendas heróicas no limiar dos contos de fadas e da história […]. Também – e espero não soar absurdo – desde tempos remotos entristecia-me a pobreza de meu próprio país amado: não possuía suas próprias histórias (ligadas à sua língua e ao seu solo), não da qualidade que eu buscava, e que se acham (como ingredientes) nas lendas de outras terras.

 

Além disso, devido a vontade da editora de publicar a sua obra em diversos volumes separados, Tolkien argumenta também na carta que estas eram complementares e indivisíveis e acaba por “anexar um mero resumo do seu conteúdo(Carta 131), no qual discute a natureza do seu universo, rica em recortes de outras culturas, a partir da sua percepção. Apesar dos esforços, O Hobbit foi publicado em 1937, separado de O Senhor dos Anéis, que foi publicado em três volumes entre 1954 e 1955. Após as publicações iniciais, outras versões foram publicadas, como o póstumo O Silmarillion, editado por seu filho, que traz complementos para o universo.

 

Tolkien também nutria uma paixão pela criação de línguas imaginárias desde a infância e, como filólogo, se dedicou a estudar línguas e literaturas antigas, o que o possibilitou criar suas próprias línguas e um universo para abrigá-las. Para ele, a palavra era o alicerce para se criar uma realidade. E é assim que diversas culturas iniciam sua cosmologia, com o surgimento da palavra para depois surgir o mundo:

 

Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto quando pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divino. Esta palavra primeiro disseram-me as Deusas Musas olimpíades, virgens de Zeus porta-égide” (Teogonia. v. 22-25) – Cosmologia Grega

 

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus ” – (João 1:1) – Cosmologia Judaico-Cristã

 

Junto da palavra, outro elemento importante para culturas é a sonoridade contida em narrativas, incluindo civilizações não-escritas, garantindo a elas que fossem preservadas ao longo do tempo. Para Tolkien, isso não seria diferente:

 

Disse-lhes então Ilúvatar [o deus criador do mundo tolkieniano]: – A partir do tema que lhes indiquei, desejo agora que criem juntos, em harmonia, uma Música Magnífica” (O Silmarillion, p. 7).

 

Além da palavra e do som, Tolkien entendia a importância do espírito nas narrativas. Um dos principais conceitos que guiou suas ideias é a noção de Felix Culpa, concebida por Santo Agostinho. Esta contempla a ideia de que para algo bom ocorrer, é necessário que uma coisa ruim a anteceda, evidenciando a inefabilidade do justo sobre a ruína do mal.

 

Capa do livro “A queda de Númenor”, escrito por Tolkien, que se passa antes da saga de Senhor dos Anéis e é uma das principais histórias de queda em seu mundo. (Créditos: HarperCollins/Alan Lee).

 

Somado a isso, ele interpreta a arte como um meio de vencer a mortalidade do mundo real, criando um mundo secundário que é diretamente associado à nossa paixão pelo primário, ou seja, o nosso. É justamente essa paixão que nos leva ao que Tolkien chama de queda: o que representa a deturpação do espírito e do sentido original do ser, a partir do momento que tentamos tomar posse das criações de uma figura divina. A queda e a mortalidade acabam por nos conduzir ao desejo de poder e um meio para exercê-lo, o que Tolkien chama na carta de máquina, pelo qual tentamos atropelar o mundo real e suprimir as vontades divinas.

 

O cristianismo, por exemplo, nos apresenta duas quedas: a queda dos anjos e a dos homens. Em Gênesis, quando Lúcifer se volta contra Deus, ele é arremessado na Terra junto a outros anjos, sendo este o momento da queda. Após isso, por meio da máquina, ele tenta corromper a maior criação de Deus, o Homem. Esse último, ao comer o fruto proibido, que germina o pecado na humanidade, sofre sua queda por consequência da tentação de Lúcifer, mas não pela sua própria vontade de atropelar o mundo real/divino. O pecado do Homem nos leva a acontecimentos como a Torre de Babel, nesse caso a máquina, onde tentamos suprimir os limites impostos por Deus e que, posteriormente, nos conduz ao momento da chegada de Jesus Cristo e de sua crucificação, evocando uma esperança de redenção à humanidade.

 

Outro exemplo de queda muito conhecida é retratado na cosmologia grega. Nela, o titã Prometeu, após se compadecer com a miséria humana na terra, rouba o fogo dos deuses para levar à eles. Entretanto, Zeus, como punição, prendeu Prometeu a uma montanha e lhe amaldiçoou a ter o fígado comido por uma águia todos os dias. Como castigo para a humanidade, enviou à Epimeteu, irmão de Prometeu, a primeira mulher, chamada Pandora, a qual levava consigo uma caixa que não deveria ser aberta. Porém ela, se esquecendo deste mandamento, abriu-a e, de dentro dela, as guerras, a fome, doenças e sofrimentos se espalharam pelo mundo, provocando a queda da humanidade. 

 

Na tradição maia é dito que no começo do mundo, quando Tzakol e Bitol haviam criado os primeiros seres humanos, perceberam que aqueles seres eram tão iguais aos deuses em sabedoria e visão, que tinham o poder de superá-los. Com medo desse futuro, foi lhes tirado os olhos e estes ficaram cegos como a face embaçada de um espelho.

 

Pintura “O Anjo Caído”, retrata Lúcifer com dor, raiva e tristeza após a sua queda. (Créditos: Museu Fabre/Alexandre Cabanel).

 

Tolkien acreditava que não poderia existir uma história sem queda, logo não poderia excluí-la de suas próprias histórias. O real motor de seu mundo são os elfos, os primogênitos de Ilúvatar, que sofrem pela queda em diversos momentos da história de Ëa, mundo onde se passa O Senhor dos Anéis. Inicialmente podemos imaginar que suas quedas tenham relação com a “magia” dos elfos. Apesar disso, “a ‘magia’ deles (elfos) é a Arte, purificada de muitas das suas limitações humanas: com menos esforço, mais rápida, mais completa. E seu objeto é Arte, não Poder(Carta 131). 

 

Contrastando a ideia de alma com o mundo, em O Silmarillion são abordados alguns assuntos que desencadearam eventos que moldaram a natureza e a história de Ëa. Esta obra conta uma série de acontecimentos ocorridos antes e durante a chamada Primeira Era do mundo, os quais se interligam com a origem do mundo e o destino das chamadas Silmarils. Estas joias feitas pelos elfos guardavam as luzes de Valinor, que seria uma espécie de Paraíso ou Valhalla.

 

Uma das primeiras passagens da história é a corrupção de um dos ainur, espíritos primordiais do universo com belas vozes. Neste momento da história, Ilúvatar, o criador, reúne os ainur e lhes propõe temas para cantarem e, conforme cantam, o mundo vai sendo criado e seu destino tecido. Enquanto todos cantam no mesmo tom e em harmonia, o ainur Melkor começa a cantar em seu próprio tom e busca superar a imaginação dos demais, inclusive a de Ilúvatar

 

A partir disso, Melkor, que se tornaria Morgoth, o primeiro Senhor da Escuridão, insere a maldade e deturpação no mundo prematuro. Isso esboça algo que irá aparecer em diversas passagens de O Silmarillion. Uma delas é sobre a queda da principal linhagem élfica, narrando sua expulsão de Valinor e queda sob o domínio de “forças do mal” em busca das Silmarils

 

Por fim, Tolkien traz um diferente significado para a luz do Sol em seu mundo. As Silmarils foram criadas após a destruição das Duas Árvores de Valinor por Morgoth e delas surgiram as luzes da Lua e do Sol. Diferente de outras culturas, onde a Lua e o Sol tem significados divinos, na cosmologia tolkieniana são objetos secundários, frutos da desvirtuação do divino, ou seja, “um termo que denota um mundo decaído, e uma visão imperfeita e deslocada” (Carta 131).

 

As obras criadas por Tolkien são inspiradas por diversas outras histórias as quais ele nutria um grande apreço, como o Kalevala, as narrativas gregas, as Eddas (coletâneas de narrativas e lendas nórdicas), histórias vikings, cristãs e do folclore do povo inglês. Como professor em Oxford, Tolkien tentou manter esta mesma paixão no coração de seus estudantes. Ele começava suas aulas, diz seu biógrafo Humphrey Carpenter, entoando gritos de guerra que faziam as carteiras vibrarem para inspirar os alunos a se sentirem dentro das histórias, fazendo-os, por meio das palavras e rimas, reviverem os personagens eternizados nas páginas. Esta mesma sensação foi transpassada em sua cosmologia, onde aborda aquelas narrativas que germinaram em seu coração e sua mente desde a infância, a vontade de que a Inglaterra, sua terra, tivesse algo de épico, pois “É claro que existia e existe todo o mundo arturiano, mas este, por muito poderoso que seja, foi naturalizado de forma imperfeita, associado com o solo britânico mas não com a língua inglesa; e não substitui o que eu sentia estar faltando(Carta 131).

 

A influência de muitas culturas diferentes na construção do universo de Tolkien estão refletidas em diversos momentos de sua história. Calendários lunares, linhas do tempo, genealogias e regras físicas deixam este universo tão detalhado quanto o nosso. Assim como em outras histórias épicas, Tolkien criou um espelho do seu mundo real, no qual  […] tentamos lidar com a ‘vida comum’[…](Carta 131).

 

Referências e para saber mais

Cosmo… o quê?

Revisitando o tema Raça no Legendarium de Tolkien: Construindo Culturas e Ideologias em um Mundo Imaginário

A Carta 131: Tolkien explica sua Obra

CARPENTER, H. J. R. R. Tolkien: uma biografia. Tradução de Ronald Kyrmse. São Paulo: HarperCollins Brasil, 2019.

TOLKIEN, J. R. R. O Silmarillion. Editado por Christopher Tolkien. Tradução de Ronald Kyrmse. São Paulo: HarperCollins Brasil, 2019.

TORRANO, J. Mito e verdade em Hesíodo e Platão. Letras Clássicas, n. 2 (outubro de 1998): 11. https://doi.org/10.11606/issn.2358-3150.v0i2p11-26.