Os cruzamentos entre ficção e fatos históricos nos versos de Homero
13 de agosto de 2024
“Eu que viajei muito e cheguei a conhecer muitos heróis, nunca meus olhos viram alguém como Odisseu. Que perseverança, e que coragem ele mostrou dentro do cavalo de madeira, onde estavam todos os mais bravos dos argivos esperando para levar a morte e a destruição aos troianos.” (Odisseia, Canto IV, Tradução de Samuel Butler).
É provável que você já tenha ouvido histórias sobre uma guerra muito antiga, que devastou uma cidade e elevou heróis à fama imortal… Ou , pelo menos, já deve ter ouvido a expressão “presente de grego” e sabe que não se trata de coisa boa! Que tal, então, embarcarmos junto aos guerreiros gregos rumo à Tróia e descobrir, se possível, como se deu de fato este combate?
Muitas vezes dado como fato histórico, é normal que algumas pessoas não saibam que o conflito entre os gregos e troianos não pode ser confirmado inteiramente nem como ficção, nem como realidade pura e absoluta. Grande parte do que chegou às civilizações posteriores sobre a Guerra de Tróia vêm de uma obra chamada Ilíada, cuja autoria recai sobre o poeta grego Homero. Para quem não conhece a história narrada belissimamente ao longo dos versos da obra clássica, aqui vai um resumo!
Tróia era uma cidade grande, poderosa e fortificada, com altas muralhas. Os governantes Príamo e Hécuba tiveram seu segundo filho, Páris, que se somou à Hector, o primogênito. Após o nascimento da criança, o rei foi avisado por uma profecia que o mais novo de seus filhos homens traria ruína à Tróia. Temendo pelo futuro de seu reino, mandou matar a criança. A zelosa Hécuba implorou que um pastor salvasse a criança e o criasse como seu no Monte Ida, onde o jovem Páris cresceu belo e forte.
Enquanto isso, no Monte Olimpo, onde viviam os deuses, a deusa da discórdia Éris ofereceu uma maçã de ouro à mais bela entre as deusas olimpianas. Ao ver que Atenas, Afrodite e Hera se prontificaram a recebê-lo, Zeus deixou a difícil decisão nas mãos de um mortal: Páris. A ele, foram oferecidos prêmios valiosos que buscavam o julgamento favorável: as maiores riquezas do mundo, por Hera, toda a sabedoria passível a um homem, por Atenas e o amor da mulher mais bela de todas, por Afrodite.
O Julgamento de Páris (1630), por Peter Raul Rubens; Museu do Prado, em Madrid.
Pintura etrusca de uma tumba mostra o momento em que Páris espera pelas deusas (560-550 aC) – Museu Britânico.
Dentre as três, ele decidiu pela deusa do amor, Afrodite, que lhe prometeu a afeição da mais encantadora entre as mortais: Helena. O problema era que a mulher já fora desposada por Menelau, o rei da belicosa Esparta.
Em linhas gerais, Páris se descobre como príncipe de Tróia e rapta Helena (alguns dizem que a rainha deixou o marido por livre e espontânea vontade, apaixonada pelo herói troiano). O irmão de Menelau e rei de Micenas, Agamemnon, juntou uma numerosa tropa de reis e seus exércitos e, juntos, partiram com força brutal rumo ao resgate da bela Helena. Assim, mais de mil navios atravessaram o Mar Egeu para sitiar Tróia.
Cerâmica representando Páris e Helena, século V aC, no Harvard Art Museum.
Rancorosas sobre a escolha do príncipe, Atenas e Hera foram algumas das divindades que estiveram ao lado dos heróis vindos de todo o Império Grego. Já Afrodite tendia ao lado de Páris, seu protegido. Como um jogo de xadrez entre deuses e seus peões mortais, o violento cerco dos gregos durou aproximadamente dez anos, frente à resistência da cidade troiana. Ansioso por findar o conflito, o herói Odisseu (também chamado de Ulisses) compartilha com os comandantes um plano arriscado para se infiltrar nas muralhas impenetráveis que observavam havia década.
Surgiu, então, o famoso cavalo de madeira! Guerreiros gregos se esconderam na barriga da grande construção, que foi deixada em frente ao portão principal da cidade, enquanto o exército parecia se retirar, como uma oferenda de paz. Convencidos por essa espécie de ‘bandeira branca’, os troianos levaram o presente para dentro de seus muros. Enquanto dormiam, em pouco tempo, os gregos dominaram Tróia e atacaram o palácio real e, assim, Helena foi levada de volta para Esparta.
Pintura de Giovanni Domenico Tiepolo, de 1760, retrata a entrada do cavalo de madeira em Tróia.
Curiosamente, a Ilíada de Homero, em seus extensos 24 cantos, dedica-se somente aos anos finais do conflito. O entendimento geral sobre o que foi a guerra, ou pelo menos sobre o que a Antiguidade acreditava que ela teria sido, se dá por registros escritos que resgataram uma tradição oral secular de poetas e bardos, que cantavam sobre feitos heróicos e deuses gloriosos. Para eles, muito mais que um mito, a Guerra de Tróia foi um momento definidor do seu passado.
Em sua obra, Homero localizou a Guerra de Tróia no momento histórico conhecido como Colapso da Era do Bronze, entre 1200 e 1150 a.C. Por volta do século XI a.C, os territórios helênicos entraram em um longo período de declínio, a “Idade das Trevas”.
“Quatro séculos nos quais as cidades foram arrasadas, as rotas comerciais foram encerradas, as escritas hieroglífica e linear, utilizadas até então, desapareceram e retrocedeu-se para um tipo de sociedade bélica e uma economia rural de subsistência. O início destes séculos sombrios seria, precisamente, a época em que tiveram lugar os acontecimentos relatados na Ilíada e na Odisseia.” (National Geographic Portugal).
Batalha final entre o herói grego Aquiles e o guerreiro troiano Heitor (Museu Britânico).
Heródoto, considerado o “pai da história”, na segunda metade do século V a.C, colocou o conflito em Tróia 800 anos atrás de si próprio. Já o matemático Eratóstenes deu um palpite ainda mais específico, o ano de 1184/3 a.C. Apesar das constantes dúvidas, que atravessaram séculos e séculos atreladas às histórias épicas de Homero, pesquisadores ainda buscam localizar precisamente este período na história e encontrar os pontos factuais nesses registros dotados de misticismo. Narrada com tanta sinceridade e maestria na Ilíada, quase como se como fruto de uma observação próxima, são muitas as tentativas de encontrar vestígios de Tróia e dos eventos que se deram por lá.
Pesquisadores se dividem entre o ceticismo frente aos versos épicos e a esperança de que as histórias do fundador da literatura ocidental tenham, pelo menos, um fundo de verdade.
A localização aproximada de Tróia foi mencionada por autores da Antiguidade, como Heródoto e Estrabão, além de muito defendida pelos romanos, que se afirmavam como os descendentes dos sobreviventes troianos. Em busca de redescobrir a Tróia narrada por Homero, no século XIX, o empresário prússio Heinrich Schliemann viajou para uma possível localização da cidade: as ruínas de Hisarlik, na Anatólia, atual Turquia. Após uma série de escavações, foram descobertos objetos como pontas de flechas e vestígios de incêndios até mesmo anteriores à época em que o poeta grego localizou o conflito. Havia, de fato, uma civilização por lá, de grande importância no período relevante (por volta do século 13 ao século 12 a.C.).
Pela formação da estrutura, reconhece-se um anfiteatro para fins de entretenimento e debate. (Créditos: Brian Harrington Spie).
Escavações em Hisarlik.
Poderá afirmar-se que Tróia era uma cidade muito próspera, com uma excelente localização estratégica próxima do estreito de Dardanelos, pelo que não seria de estranhar que se tivesse visto afetada por conflitos bélicos desencadeados pelos que ambicionavam exercer o poder sobre ela. (National Geographic Portugal).
Registros escritos pelos Hititas, povo antigo do área central da Turquia, apontam para uma disputa sob o território que supostamente foi Troia, conhecido por eles como “Wilusa”, que se assemelha na pronúncia à Ilion, palavra grega que gerou o título “Ilíada”.
Tais descobertas não provam, por ora, a existência de uma Guerra de Tróia (nem mesmo uma grande cidade) exatamente como acreditavam os gregos antigos. Alguns estudos sobre o texto épico enquanto uma construção comunitária apoiam a ideia de que o surgimento de um conto como o da Guerra de Tróia pode residir em uma tentativa de fugir do obscurantismo que assolou o mundo antigo do Mediterrâneo grego, gerando consequências sociais, políticas, econômicas e psicológicas negativas. Fazia sentido, então, sonhar com um “passado de ouro”, onde reis poderosos e heróis quase imortais atravessaram um mar inteiro para defender sua honra e conquistar um território.
Esta é uma boa pergunta, para a qual talvez nunca obteremos uma resposta! A identidade do poeta, assim como a veracidade da Guerra de Tróia, ainda se mantém um mistério. Devemos lembrar aqui que estamos falando de um período antiquíssimo da história, uma época de tradição predominantemente oral milênios atrás. Ademais, os registros escritos que sobreviveram ao longo de muitos e muitos séculos passaram por diversas traduções, que podem ter deixado para trás certos aspectos de seu sentido original.
Não há como saber, ao certo, se Homero foi realmente uma figura histórica por si só ou se simbolizava múltiplos autores da tradição oral, reunidos, por algum motivo, sob este nome. Muitos estudiosos acreditam que, no mesmo movimento que outro poeta grego, Hesíodo, ele recolheu o conhecimento lendário de sua tradição cultural e compilou-o por escrito.
Busto de Homero, autor desconhecido.
O fim da já comentada Idade das Trevas ocorreria no século VIII a.C., que é precisamente quando se considera que nasceu o poeta. Análises e estudos filológicos realizados por especialistas de várias partes do mundo apostam que, pela evolução da linguagem presente na Ilíada e na Odisseia, este é o período em que elas teriam sido escritas. Nada se pode afirmar acerca de sua vida, mas acredita-se que ele correspondia à figura do aedo:
“um cantor que recitava poemas épicos lendários nas praças destas cidades, fazendo-se acompanhar por um instrumento musical de cordas, e que, em determinada altura da sua vida adulta, ficou cego na sequência de um acidente” (National Geographic Portugal).
Apesar das dúvidas acerca de quem foi em vida, é inegável que estes poemas épicos tiveram um impacto inimaginável na cultura mundial. Para Platão, Homero foi o educador da Grécia Antiga. Entre a história e a ficção, os contos do poeta estabeleceram padrões para o comportamento, a educação, a política e os costumes da sociedade clássica.
Suas narrativas deram início e definiram os moldes estruturais da literatura ocidental, versando sobre sentimentos e situações das mais humanas, entre deuses e homens, vitórias e derrotas, amor e ciúmes, orgulho e piedade… Como já dizia o professor e crítico literário Harold Bloom, “todos os que hoje lêem e escrevem no Ocidente, independentemente da origem racial, do sexo ou do campo ideológico, ainda são filhos ou filhas de Homero.”
[Texto de autoria de Maria Eduarda Abreu, estudante de Jornalismo e estagiária do Núcleo de Comunicação e Design]
Referências
HOMERO. Ilíada. Tradução de Haroldo de Campos. São Paulo: Arx, 2002-2003.
HOMERO. (2014). Odisseia. Apresentação de Martin Richard, Tradução e introdução de Christian Werner. São Paulo: Cosac Naify.
Did the Trojan War actually happen?
Você sabe o que significa a expressão ‘pomo da discórdia’?
The Trojan War: History or Myth?
Para Saber Mais
Playlist Canal History Brasil – Grandes Mitos: a Ilíada e a Odisseia