Um breve recorte da herança africana na Língua Portuguesa
20 de agosto de 2024
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A Língua Portuguesa Brasileira é marcada por influências de diversas línguas do continente africano. Para melhor compreender a história das origens africanas em nosso idioma, assim como as diferenças e outros elementos que o compõem, precisamos voltar ao tempo em que essas línguas tiveram seu primeiro contato com o português.
No começo do séc. XVI, milhares de pessoas negras africanas foram desenraizadas de seus países de origem, levadas à costa brasileira e forçadas a trabalhar em um sistema de escravidão imposto por colonizadores portugueses. É difícil dizer quais eram as línguas faladas por cada um deles, já que muitas destas pessoas vieram majoritariamente da região banto e os outros da região oeste-africana. Para se ter uma ideia, apenas a região banto contém por volta de 300 línguas em seu território.
Mapa da Língua Bantu – Ulamm. (Créditos: Wikimedia Commons).
Dentro dessas centenas de línguas que se encontravam em território brasileiro, algumas se destacam, como o Kikongo da região banto, o Kimbundu e o Umbundo; e da região oeste-africana, a iorubá e o conjunto de línguas ewe-fon, também conhecido como minas.
Junto a esse grupo de pessoas de diferentes lugares do continente africano, veio uma grande diversidade linguística e cultural, que rapidamente foi identificada como instrumento de controle por senhores de engenhos e padres jesuítas. O modo como eles usavam elementos de línguas africanas eram parecidos, porém tinham objetivos diferentes: os jesuítas aprendiam e usavam as línguas africanas para ensinar as pessoas escravizadas sobre o catolicismo, reescrevendo textos cristãos nestas línguas. Já os senhores de engenho aprendiam esses idiomas para ditar ordens a esses povos, os quais eles misturavam entre si, para evitar conversas e possíveis rebeliões.
Dentro desse contexto, existiam também os “ladinos”, pessoas escravizadas bilíngues que falavam sua língua materna de matriz africana e o português. Eram descritos como “homens de juízo e mais discretos” pelo Padre Raphael Bluteau (1638-1734) em seu livro “O Vocabulário Português e Latino”, escrito entre 1712 e 1728. Outras figuras essenciais nessa interação entre línguas africanas e o português foram as “amas de leite”, mulheres destinadas a cuidar dos filhos de senhores de engenhos e que passavam a essas crianças, em seu dia a dia, elementos da língua e cultura africana.
Por Rafael Bluteau (1638-1734) – Veritas Art Auctioneers. (Créditos: Domínio público).
Essas interações entre línguas resultaram em um conjunto de textos de diferentes autores que, apesar de seus objetivos iniciais não serem bem intencionados, nos ajudam a traçar uma parte do caminho que a língua portuguesa brasileira percorreu para chegar à língua que conhecemos nos dias de hoje, como “ A Arte da Língua de Angola” (1697), do Padre Pedro Dias, e “A obra nova da língua geral de mina”, de Antônio Costa Peixoto, escrito entre 1731 e 1741.
Durante a época da escravidão no Brasil, a interação entre o Português de Portugal, línguas africanas e línguas dos povos indígenas no território brasileiro foi constante.
Após a abolição oficial da escravidão no Brasil, em 1888, os povos afrodiásporicos se encontraram em momento de desamparo. Sem dinheiro, sem moradia e em um país desconhecido, a porcentagem que recebeu sua liberdade se aglomerou em comunidades. Já outros foram levados a diferentes regiões do Brasil, em um movimento de tráfico interno, se espalhando ainda mais pelo território, onde se estabeleceram em favelas e comunidades quilombolas. Castro (2005) caracteriza os próximos momentos históricos desse contato:
Depois de quatro séculos de contato direto e permanente de falantes africanos com a língua portuguesa no Brasil, o português do Brasil, naquilo em que ele se afastou do português de Portugal, descontada a matriz indígena menos extensa e mais localizada, é, em grande parte, o resultado de um movimento implícito de africanização do português e, em sentido inverso, de aportuguesamento do africano. (Castro, 2005, p. 08).
As línguas que mais se mesclaram e influenciaram o português como o conhecemos hoje foram da região banto, o kimbundu, umbundo e o kikongo. Ainda hoje, inúmeros dialetos de base banto são falados como línguas especiais por comunidades negras da zona rural, provavelmente remanescentes de antigos quilombos em diversas regiões brasileiras (Castro, 2005).
Influências linguísticas se desdobraram e evoluíram ao longo do tempo e hoje suas marcas são encontradas na morfologia, sintaxe, fonologia, pronúncia e vocabulário do português atual. Um exemplo dos desdobramentos deste contato transatlântico de línguas é o fenômeno do “pretoguês” ou “pretuguês”.
O pretuguês foi conceituado por Lélia Gonzalez, intelectual e personalidade influente no movimento negro brasileiro, e descrito como um fenômeno linguístico-cultural , caracterizado por ser “(…) nada mais é do que marca de africanização no português falado no Brasil (…)” (Gonzalez, 1988).
Lélia Gonzalez. (Créditos: Cezar Loureiro/Domínio público).
Ou seja, a abreviação de palavras: ‘você’ para ‘cê’; a ausência do R e a entonação de certas vogais: ‘conversando’ se torna ‘cunvessano’; a exclusão de redundâncias de frases em plural: ‘os meninos vão’ para ‘os menino vai’; são todas essas marcas de africanização que passaram a ser consideradas um modo de “falar errado” e usadas para oprimir e deslegitimar a inteligência e a capacidade intelectual daqueles que usam tal forma de falar mais frequentemente.
Fora essas características morfossintáticas do pretuguês, no vocabulário da língua portuguesa “culta” também existem palavras que fazem parte do dia a dia brasileiro e que apresentam origens diretas de línguas africanas, por exemplo:
Podemos concluir que o português atual carrega consigo uma grande herança em suas costas. Herança esta que vêm tanto dos povos africanos em território brasileiro, tanto dos europeus que da nossa terra se aproveitaram e também dos povos indígenas originários da nossa nação.
Os elementos presentes no vocabulário da língua portuguesa atual serão explorados na oficina Tramas dos Afetos Afro-Linguísticos, que acontecerá neste sábado, 24 de agosto de 2024, a partir da exposição MetropoliTRAMAS, do Espaço do Conhecimento UFMG. A atividade é gratuita e para participar basta retirar os ingressos 2h antes da atividade na recepção do museu.
[Texto de autoria de Eve Mota Reis , estudante do curso de Letras e bolsista do Núcleo de Ações Educativas e Acessibilidade]
Referências
Bluteau, R. Vocabulario Portuguez e latino – v. 2 e 5. Lisboa: Officina de Pascoal da Sylva, Impressor de Sua Magestade, 1716.
(Margarida Petter) – Por que estudar línguas africanas no Brasil?
Silveira, A. F. de S. A denominação do idioma nacional no Brasil. In: BECHARA, E. (org.). Estudo da língua portuguesa: textos de apoio. Brasília: FUNAG, 2010 [1946].
(Yeda Pessoa Castro) – A influência das línguas africanas no português brasileiro