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Vozes da quebrada: a favela como patrimônio cultural

O papel da cultura nos processos de resgate da identidade negra periférica e suas ancestralidades

 

31 de outubro de 2023

 

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A diversidade cultural talvez seja um sinônimo de Brasil, mas apesar disso enfrentamos questões relacionadas à liberdade de expressão. A desigualdade, discriminação e a falta de politicas publicas eficazes continuam a ser o maior desafio na garantia de liberdade e harmonia entre grupos culturais. Vivemos em nossa sociedade, emaranhados em uma teia de saberes e manifestações culturais, e tendemos a selecionar e delimitar, de forma quase imprudente ou inconsciente, por meio de diversos fatores como a escola, veículos midiáticos, etc., o que é ou não digno de ser salvaguardado. Ao falar de patrimônio cultural, há sempre um pensamento pré-determinado do que seria, ou não, parte importante dos monumentos e práticas a serem preservadas. Nesse sentido, o processo de colonização ocorrido nas Américas e principalmente no Brasil é um fato histórico fundamental para entender como a memória é delimitada para caber em um arranjo histórico pré-definido. 

 

Com isso, neste texto, vamos refletir sobre uma outra maneira de se pensar a memória, colocando em evidência os territórios periféricos (as favelas) e trazendo uma nova perspectiva sobre como o patrimônio pode ser entendido. E a partir dessa análise, evidenciaremos as práticas culturais que criam vínculos e identidade entre os moradores dessas comunidades e que fomentam formas de resistências plurais contra mecanismos de opressão e desigualdade.

 

A princípio, precisamos entender o que é um patrimônio cultural, como ele sofre modificações ao longo do tempo e como essas mudanças são importantes para entender a sociedade em que vivemos. Segundo o escritor e doutor em geografia Magno Vasconcelos Pereira Jr., o patrimônio cultural é o conjunto de manifestações ou objetos, nascidos pela produção humana, que uma sociedade recebeu como herança histórica e que constituem elementos significativos de sua identidade como povo (VASCONCELOS, 2018). Um dos desafios no processo de patrimonialização é a seleção e a delimitação do que deve ser protegido. Em muitos casos, essa seleção é subjetiva e envolve decisões que afetam comunidades locais, grupos étnicos e outras partes interessadas.

 

Grafite. (Créditos: Marcelo Regua/Agência O Globo).

 

Além disso, a definição de patrimônio deve estar em constante manutenção, visto que o que é valorizado hoje pode não ser o mesmo no futuro, como, por exemplo, as estátuas e monumentos que fazem homenagem aos colonizadores do passado (GONÇALVES, 2015). Também é preciso questionar quem tem o direito a representar o patrimônio e como as comunidades estão sendo incorporadas no processo de patrimonialização e gestão do patrimônio. E é nessa perspectiva que discutiremos a periferia como um território marcado de herança, exatamente por unir história e povo em um só lugar.

 

As favelas brasileiras nascem no início do século XIX, em um país mais preocupado com a expansão industrial do que com a população negra que naquele período passava por um momento historicamente importante de emancipação de corpos. A partir do crescimento constante e desordenado da cidade, alinhado à falta de prestígio e exclusão do povo preto, as favelas começam a surgir nos morros em volta, à margem das cidades. Com o acúmulo diversificado de pessoas, surgem nesses espaços sociedades inteiras, contendo uma ancestralidade e tecnologia que ampliaria, no futuro, as conexões e desenvolvimento culturais, proporcionando o nascimento dos principais estilos musicais, artes urbanas e manifestações religiosas.

 

Posto isto, se a periferia é um berço cultural, ela é por conseguinte um patrimônio cultural. Viver em uma favela é renovar memórias, compartilhar experiências com parentes (seus iguais) para fortalecer relações sociais e familiares – presentes e futuras. De acordo com a antropóloga Laura Jane Smith, as noções de patrimônio são influenciadas por questões de identidade, poder e resistência. Embora lugares e monumentos possam surgir como patrimônio por seu vínculo histórico, locais como as favelas mostram que são os processos culturais e atividades que ocorrem nelas e ao redor delas, e dos quais as pessoas fazem parte, que a tornam patrimônio (SMITH, 2006). Quando abordamos temáticas patrimoniais, é interessante pensar no espaço em que este patrimônio está sendo vinculado, neste caso as favelas, como a Rocinha (RJ), Aglomerado da Serra (MG), Paraisópolis (SP), entre muitas outras.

 

Paraisópolis (SP). (Créditos: Fabio Tito/G1).

 

O habitante de determinado local não vê o espaço patrimonial como um objeto turístico, como um museu propriamente dito, e sim como parte fundamental de seu desenvolvimento. Algo que pertence ao indivíduo e à comunidade, como é o exemplo do Museu da Maré no Rio de Janeiro (RJ) e o Muquifu – Museu dos Quilombos e Favelas Urbanas em Belo Horizonte (MG), ambos idealizados e preservados pelos moradores das comunidades. O bem cultural não é visto apenas como um simbolismo de representação do passado, a vivência dos habitantes é muito mais empírica, cognitiva e afetiva. A relação do indivíduo que habita o local o coloca como parte essencial de sua existência. Portanto, ao pensar na favela como patrimônio é importante entender que ela está intrínseca ao cotidiano e vida dos moradores desse local, exatamente por eles serem os responsáveis pela manutenção e criação dos movimentos artísticos e sociais.

 

Parte importante dessa manutenção são as juventudes, hoje muito mais diversas do que há dois séculos atrás, mas ainda sim, ancestrais, vívidas e resistentes. É dessas juventudes que nascem os apelos por uma sociedade mais justa, inclusiva e igualitária. É delas também, alinhado a uma memória construída pela oralidade, através das histórias contadas pelos mais velhos e das próprias vivências como moradores, que nascem os movimentos e produções artísticas que exprimem autenticidade, atuando e moldando a estética, a linguagem e o próprio espaço, o que contribui diretamente na construção permanência de identidade dos moradores e da sociedade (GIACOMINI, 2012, 2020). Além disso, a cultura e a arte desenvolvida ajudam a preservar as influências de matriz africana e contribuem com a luta contra as tentativas de apagamento étnico-racial (RIBEIRO, 2017).

 

Muquifu – Museu dos Quilombos e Favelas Urbanas em Belo Horizonte (MG). (Créditos: Lucas Prates).

 

A identidade da juventude negra periférica também se dá a partir das formulações estéticas, que são como marcadores sociais de vivências cotidianas. Para além do dress code – código de vestimenta – que surge em tendências, os jovens periféricos buscam se demonstrar para o mundo, afirmando seu pertencimento como indivíduo dentro da sociedade e como morador de uma periferia. O jeito de falar com gírias, as roupas e a performática, o que se formula de forma pré-estabelecida na sociedade, antecedendo o indivíduo e é utilizado como forma de ser no cotidiano (GEERTZ, 2001). Mas, nesse sentido se constrói como movimento de luta e afirmação para o enfrentamento das violências diárias vivenciadas por estes que são constantemente criminalizados pelos frutos do racismo estrutural presente na sociedade.

 

A identidade negra periférica, ou a identidade formada nas periferias, vem como forma de resgate do que antes era usado como marginal e estereotipado, sendo assim uma forma de resistência para que não se destrua o patrimônio presente nesse local. Vale ressaltar o recorte presente no texto, uma vez que as vivências dos jovens negros são plurais e podem se expressar de outras maneiras. 

 

Nesse sentido, considerando os modos de ser e estar no mundo, a estética de uma parcela da juventude negra periférica, esse patrimônio cultural das periferias e favelas, se expressa também em manifestações culturais. A exemplo, temos o Hip-Hop, que surge como uma expressão artística e como forma de movimento no campo da vivência social, a partir da música, dança e mixagens. Quando nos debruçamos no Rap, parte da cultura Hip-Hop, as batalhas são um elemento essencial em que a expressividade e a troca de vivências acontece, fomentando assim as relações culturais manifestadas dentro da marginalidade.

 

Batalha do Point. (Créditos: Reprodução/SPCity).

 

A oralidade presente no Rap, é um dos mecanismos que a juventude periférica encontra para se expressar, considerada uma tecnologia ancestral, se firmando como forma decolonial de expressividade. A antropóloga Lélia Gonzalez (1982) fala do conceito de pretuguês como uma maneira própria da negritude de se utilizar da língua da colonização, o português. O pretuguês atribui aspectos da ancestralidade negra, manuseando assim a língua portuguesa na forma da periferia, de maneira antissistêmica, antirrascista e fora da norma culta. Entretanto, essa fala é condenada pela sociedade colonial e hegemônica, por ser atribuída a baixa escolaridade, não a considerando com a devida veracidade. 

 

Os Slams são um grito do que foi muito tempo abafado. Esse contexto de uma cultura negra e periférica, que se expande de forma oral, traz o que se pode se chamar de forma pedagógica, que seria o falar de forma que os seus entendam para que a informação se torne popular (Rigui, 2011). Quando se escreve e declama uma poesia marginal, conhecida como Slam, muitas vezes se denuncia as dificuldades que um jovem negro de periferia enfrenta no Brasil, demonstrando através das gírias e mesclas com conteúdos academicistas, proliferando informações de forma que seus semelhantes se identifiquem, e criando assim uma identidade negra periférica com consciência política da sua existência. O slam se firma como um importante patrimônio periférico, já que é nas batalhas de rua que o jovem negro encontra espaço para conseguir manifestar o que está internalizado e receber, de certa forma, uma solidariedade dos seus, que também estão nesse local para manifestar suas dores a partir do grito do Hip-Hop.

 

Família de Rua. (Créditos: Paula Huven).

 

Concluímos, assim, que o patrimônio cultural periférico perpassa uma historicidade de apagamentos e violências. A sociedade colonial criou um estereótipo classista e racista acerca do que faz a cultura periférica, a colocando como inferior e não a valorizando como pertencente a uma formulação cultural própria e de muita autenticidade. Assim, convidamos os leitores a quebrarem esse estigmas, buscando cada vez mais aprofundar-se no que vem da margem, conversando, lendo e ouvindo o que é produzido por essas pessoas, valorizando os artistas periféricos do país. Abaixo estão algumas sugestões de espaços, centros culturais e artistas para conhecerem:

 

Família de Rua

Festival Toca na Favela

O COLETIVO | dicampana

Poeta: Naruna

Programa Manos e Minas

Projeto Seu Vizinho

Racionais’mc

 

Discussões como manifestações culturais e a potência de vozes múltiplas e diversas estarão presentes na nova mostra de curta-duração do Espaço do Conhecimento UFMG, intitulada “MetropoliTRAMAS”. A exposição abordará, entre outras coisas, a relação entre municípios e cidadãos metropolitanos. Acompanhe mais informações por meio de nossas redes sociais (@espacoufmg).

 

[Texto de autoria de Jennyfer Felicio e Kayke Vinicius, estudantes do curso de Antropologia e Arqueologia da UFMG e mediadores do Núcleo de Ações Educativas e Acessibilidade]

 

Referências:

GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 2001.

GIACOMINI, S. M.; MARIA, E. A. Família, amizade e trabalho: perspectivas dos estudantes bolsistas de ação social da PUC-Rio. In: Alexandre Souza Chaves; Ricardo Ismael; Waldecir Gonzaga.. (Org.). Perfil da Juventude na PUC-Rio – 2018. 1aed.Rio de Janeiro: Editora da PUC-Rio, 2020, v. XX, p. 99-999.
_____. O corpo negro na produção cultural brasileira. In: Ciclo de Conferências Cultura e Identidade, 2012, Salvador. Anais do Ciclo de Conferências Cultura e Identidade. Salvador, 2012.

GONÇALVES, J. R. S. (2015). O mal-estar no patrimônio: identidade, tempo e destruição. Estudos Históricos (rio De Janeiro), 28(55), 211–228. https://doi.org/10.1590/S0103-21862015000100012

GONZÁLEZ, L. “A mulher negra na sociedade brasileira”, O lugar da mulher – Estudos sobre a condição feminina na sociedade atual, Rio de Janeiro, Graal. 1982

MENESES, U. T. B. O campo do patrimônio cultural: uma revisão de premissas. In: SUTTI, Weber (Coord.). I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural: sistema nacional de patrimônio cultural – desafios, estratégias e experiências para uma nova gestão. Brasília, DF: Iphan, p.25-39, 2012.

RIBEIRO, D. O que é lugar de fala?, Belo Horizonte, Grupo Editorial Letramento, 2017.

RIGHI, V. J. RAP: ritmo e poesia: construção identitária do negro no imaginário do RAP brasileiro. 2011. 515 f., il. Tese (Doutorado em Literatura)—Universidade de Brasília/Université Européenne de Bretagne, Brasília/Rennes, 2011.

SMITH, L. J. (2006). Uses of Heritage.

VASCONCELOS P. JUNIOR, MAGNO. Patrimônio cultural e a institucionalização da memória coletiva no Brasil. Biblio3w, v. XXIII, p. 1, 2018.