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Um Espaço para Recordar

 

O tema da memória é de grande interesse para as mais diversas áreas do conhecimento. Desde a neurociência até a história, discutem-se, através de várias abordagens, seu significado, usos e funções. Esse tema é muito caro aos historiadores, que consideram a memória uma a forma de representar, no presente, algo que não existe mais. Ela é, então, “o presente do passado”. É através dela, inclusive, que podemos identificar e determinar a própria passagem do tempo.

 

A Persistência da Memória, Salvador Dalí, 1931. Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. 

 

Explicamos melhor: tente pensar no que aconteceria se você não tivesse memória alguma. Se não pudesse se lembrar do que almoçou ontem, onde mora, quem são os seus amigos, qual seu nome ou sua idade. Se isso ocorresse, você também não conseguiria pensar ações para o futuro, por exemplo, quem encontraria amanhã, quais são seus compromissos da semana, ou quantos anos fará no seu próximo aniversário. A memória, na verdade, é uma âncora que permite nossa localização no tempo e no espaço. Ela é, em si, o que nos atrela à nossa própria ideia de existência

 

Para pensar as funções da memória: 

Um dos casos que mais intriga a ciência sobre a perda da memória é o do musicista inglês Clive Wearing. Clive sofre de amnésia crônica severa, e só consegue se lembrar de coisas que aconteceram há, no máximo, 10 segundos atrás. No entanto, o musicista ainda toca seu piano como se nunca tivesse esquecido do que aprendeu. Ele também possui ainda um afeto muito grande por sua esposa, apesar de não se lembrar de seu nome, de como se conheceram, ou sequer que são casados. Há um capítulo muito interessante no livro “Alucinações Musicais”, de Oliver Sacks, sobre esse caso. 

 

Assim como a memória nos localiza em um tempo e um espaço, nós também utilizamos as datas e os locais como pontos de referência para lembrar. Por exemplo, tente se lembrar de algo que você fez completamente sozinho, sem pensar em alguém, sem um espaço físico ou um dia exato para se nortear. Muito difícil, não é? Isso ocorre porque, como afirmou o sociólogo Maurice Halbwachs, o indivíduo que lembra é sempre um indivíduo inserido em um “grupo de referência”. A memória é, então, tanto um trabalho pessoal, quanto coletivo

 

A memória ocupa lugares de importâncias diferentes, de acordo com a época e o lugar que estamos analisando. Há muitas comunidades tradicionais que se valem da tradição oral como forma de transmissão de sua cultura e identidade através das gerações. Nesses grupos, a memória ocupa uma posição de grande valor. Não à toa, nesses grupos, também é dado às pessoas mais velhas um lugar bastante especial, já que, como guardiões da memória, tornam-se sujeitos de referência para a comunidade. Hoje em dia, a dinâmica da maioria das sociedades é bem diferente: por exemplo, quantas vezes você já parou para escutar as lembranças de seus familiares mais velhos sobre os acontecimentos do passado? 

 

As formas de lembrar também mudam com as transformações sociais. Elas também têm história! Há diversas formas de garantir o direito à memória dos indivíduos, dos coletivos e das nações. As políticas de patrimonialização (ou seja, que transformam aspectos materiais e imateriais da cultura em patrimônio) são uma dessas formas. Outra forma muito importante é a criação e conservação de museus. Eles carregam aspectos da memória social em seu acervo, nas informações transmitidas através das exposições e nas narrativas históricas que constroem. Nesse sentido, é necessário que sempre tenhamos um olhar crítico ao visitar museus: a memória social pode muitas vezes ser forjada e manipulada, ou representar apenas os interesses do grupo que a orienta ou que constrói seus símbolos. 

 

Pense comigo: quantos museus você conhece no Brasil que tratam sobre o nosso período de ditadura militar? Esse momento da história de nosso país é lembrado pelos indivíduos que o experienciaram de maneiras muito diferentes. Ao mesmo tempo, houve diversas tentativas deliberadas, ao longo dos anos, de apagamento de suas histórias de repressão, de seus crimes e horrores. Por isso, é importante que as pessoas que não vivenciaram o período também possam acessar as memórias desse passado, assim como é fundamental que as pessoas que o vivenciaram de forma trágica tenham espaços que protejam suas memórias. Em outras palavras, é preciso que criemos uma memória social em torno da ditadura, garantindo uma cultura de repúdio aos acontecimentos desse período. Chamamos essas políticas de “dever de memória”. Temos, em São Paulo, um museu sobre o período ditatorial, chamado Memorial da Resistência, mas o Brasil ainda está, nesse sentido, muito atrasado comparado a outros países da América Latina.

 

Memorial da Resistência em São Paulo – Katarina Holanda Fotografia, 2016. Disponível em: https://bit.ly/2ImzL7b

 

Para pensar a Ditadura Militar e o dever de memória:

O documentário Nostalgia da Luz, de Patricio Guzmán, trata dos diversos impactos causados pela ditadura de Pinochet, no Chile. O filme aborda duas linhas narrativas que se cruzam: de um lado, o trabalho de astrônomos da base de observação do deserto do Atacama, que olham para o espaço em procura de respostas de cunho existencial. De outro, o trabalho de um grupo de mulheres que varre o deserto em busca dos restos mortais de seus entes queridos, assassinados e apagados pela ditadura militar chilena. 

 

E se construíssemos nossos próprios museus? Existem alguns projetos desenvolvidos junto a moradores de comunidades que promovem o registro, a preservação e a divulgação de sua história e memória coletiva. O projeto “Onde mora a minha história”, realizado pelo Museu Histórico Abílio Barreto, trabalha com a história do bairro Serra Verde, na região de Venda Nova, em Belo Horizonte. A ação convida os alunos das escolas da região a montarem seu próprio acervo e exposição, com o auxílio de professores e de uma equipe pedagógica. Outro exemplo muito famoso é o do Museu da Maré, no Rio de Janeiro, que já possui 14 anos. Esse museu é resultado de um trabalho coletivo dos próprios moradores das comunidades da Maré, que, através de sua própria narrativa, contam sua história nas exposições e ações educativas por eles promovidas. Um aspecto especialmente importante desse projeto é preservar a memória de luta e resistência dos moradores frente ao histórico de forte violência policial e racismo na região.

 

Esses foram apenas alguns pontos para refletir sobre esse tema tão complexo! A memória está em todo o tempo e em todo o lugar. Ela é uma habilidade do indivíduo, um trabalho coletivo, um compromisso social e um dever político. Ela habita nossas cabeças, nossos afetos, nossas casas e nossos museus. Por fim, a memória (e por que não o esquecimento?) é, sem dúvida alguma, uma das faculdades que nos tornam humanos!

 

Para saber mais:

DUTRA, Eliana de Freitas. A memória em três atos. Deslocamentos interdisciplinares. Revista USP. São Paulo, n. 98, p. 69-86, jun-ago. 2013.

NORA, Pierre. Entre a memória e a história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo, n. 10, p. 7-28, dez. 1993.

PEREIRA, Júnia Sales, et al. Escola e museu: diálogos e práticas. Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Cultura/Superintendência de Museus, 2007, p.128.

SACKS, Oliver. Alucinações Musicais: relatos sobre a música e o cérebro. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

SCHMIDT, M.; MAHFOUD, M. Halbwachs: memória coletiva e experiência. Psicologia. USP, v. 4, n. 1-2, p. 285-298, 1 jan. 1993.

 

Sites de museus e memoriais

Museo de la Memoria y los Derechos Humanos (Chile) 

Memorial da Resistência de São Paulo (Brasil) 

Museu da Maré (Rio de Janeiro)

Rede de Museus e Espaços de Ciência e Cultura da UFMG

 

Notícia

Nova Museologia cria memoriais antirracistas no Brasil e no mundo

 

[Texto de autoria de Ana Vila Pacheco, mediadora do Núcleo de Ações Educativas e Acessibilidade]