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‘Saímos do mapa da fome, mas nosso modelo agrícola ainda é muito ruim’, afirma especialista em segurança alimentar

sexta-feira, 14 de outubro de 2016, às 11h28

Um dos principais especialistas brasileiros em segurança alimentar, o economista Renato Sérgio Maluf, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, anda preocupado com os desdobramentos do que chama de “ruptura democrática” – a troca de governo após o processo de impeachment – sobre os avanços propiciados pelas políticas de alimentação e nutrição no Brasil.

"As conquistas têm razoável grau de enraizamento, mas há risco de retrocesso, especialmente em uma sociedade tão conservadora e excludente como a nossa", alerta Maluf, que participa, nesta segunda-feira, 17, a partir das 9h, no auditório da Reitoria, da mesa de abertura da Semana do Conhecimento ao lado do deputado federal e do ex-ministro do Desenvolvimento Agrário, Patrus Ananias.

Nesta entrevista ao Portal UFMG, Renato Maluf, que presidiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e integra a coordenação do Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional, critica o modelo agrícola brasileiro, que define como “monocultor, de grandes extensões, muito mecanizado e com uso fora dos limites de agrotóxicos”, e a dificuldade em aprovar leis e reformas que contribuam para torná-lo mais sustentável.

Poderia antecipar as linhas de abordagem de sua conferência? Pretendo abordar principalmente duas questões. A primeira é a relevância do tema já que se trata de uma questão essencial na vida das pessoas e na organização da sociedade, a alimentação. E o segundo ponto que pretendo abordar é o papel do conhecimento. Na semana passada, decidiu-se pela criação de rede nacional de pesquisa nesse tema durante o Encontro Nacional de Pesquisa em Segurança Alimentar, que reuniu, em Brasília, cerca de 250 pesquisadores e estudantes do Brasil. Também vou apresentar estatísticas do diretório de grupos de pesquisa do CNPq, que mostram que houve no Brasil uma explosão de grupos de pesquisa dedicados a esse tema, sobretudo a partir do primeiro Governo Lula, quando a questão foi posta na agenda política do país e repercutiu na academia.

Qual o impacto da temática para a sociedade brasileira? O Brasil registrou importantes conquistas nesses últimos anos. Terei, inclusive, o prazer de compartilhar a mesa com o deputado Patrus Ananias, que, quando ministro, foi um dos responsáveis pelo fato de o Brasil ter saído da vergonhosa condição de integrante do mapa da fome das Nações Unidas. O problema é que estamos entrando em tempos obscuros, de ruptura democrática. As conquistas têm razoável grau de enraizamento, mas há risco de retrocesso, especialmente em uma sociedade tão conservadora e excludente como a nossa.

A Assembleia Geral das Nações declarou 2016 como o ano das leguminosas. Qual a importância de debater essa questão? As Nações Unidas, por meio da FAO (Food and Agriculture Organization), elege anualmente um produto, uma variedade de produtos para difundir a importância do consumo. As escolhas quase sempre são bem-feitas. Às vezes, podem induzir o consumo de algum alimento como ocorreu recentemente com a quinoa, que tem muitas qualidades nutricionais. Em relação às leguminosas, tema deste ano, penso que, no caso brasileiro, ela poderia suscitar reflexões sobre o feijão. De um modo geral, a escolha de um alimento pela FAO pode contribuir para reflexão sobre os rumos da produção de alimentos no mundo.

Como avalia o modelo agrícola brasileiro? A agricultura brasileira é sistema muito heterogêneo, no qual coexistem modelos distintos, que às vezes atuam de forma complementar, outras de modo conflitivo, mas que, sem dúvida, representam visões distintas sobre a relação com a natureza e com a própria alimentação. Há décadas, o modelo econômico hegemônico no Brasil vem sendo promovido e estimulado pelas políticas públicas com base em uma concepção – falsa – de que ele representa o progresso. Na prática, é um sistema monocultor de grandes extensões, muito mecanizado e com uso fora dos limites de agrotóxicos. Somos o maior consumidor mundial de agrotóxicos. O Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) e o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional têm-se mobilizado para transformar esse modelo. Há muito tempo, tentamos que o governo aprove o programa de redução de agrotóxicos, e isso não tem sido possível graças à forte oposição da bancada ruralista e do Ministério da Agricultura, que, inclusive, evita o uso do termo agrotóxico – lá se fala em defensivo, para mascarar o significado tóxico e danoso à saúde. O Brasil chega ao ponto de usar agrotóxicos proibidos internacionalmente por acordos dos quais é signatário, mas, na prática, não consegue fiscalizar seu cumprimento ou reduzir o uso desses produtos.

Em relação ao uso de agrotóxicos, há diferença entre o produto vendido no mercado interno e aquele que é exportado? Não há uma diferenciação clara entre agricultura de mercado interno e externo, com exceção de alguns produtos destinados exclusivamente ao mercado externo. A maioria dos alimentos tem os mesmos destinos, inclusive do ponto de vista de modelo produtivo. Nosso principal produto de exportação, a soja, que é produzida em larga escala na região Centro-oeste e agora se desloca para o Norte, segue esse modelo. Mas a soja cultivada em pequena e média escalas no Sul do Brasil também se vale de agrotóxicos. A agricultura familiar brasileira não está isenta desse forte movimento de pressão imposto pelas indústria química e de sementes com os transgênicos. O uso dos transgênicos, infelizmente, não é exclusivo do agronegócio; as indústrias de sementes conseguem iludir e capturar os agricultores de médio porte. As frutas, por exemplo, cujo cultivo é baseado no abusivo do agrotóxico, são vendidas no mercado interno. Em alguns casos, pode haver alguma fiscalização do comprador internacional, que talvez exija um produto com algum tipo de controle, mas, em geral, não há um bom controle no mercado interno. A Anvisa tem laboratórios que procuram fazer esse monitoramento, mas muito aquém do necessário. E todo esforço feito para regulamentar, restringir, limitar e monitorar é barrado no interior do governo, pelos setores comprometidos com esse tipo de modelo, além do Congresso e do Judiciário – muitas vezes, o Judiciário considera inconstitucionais medidas que a Anvisa tenta adotar para avançar nesse controle.

O que a população pode fazer para mudar esse cenário? Podemos fazer muito, em vários sentidos, como consumidores, por exemplo, exigindo nossos direitos como cidadãos, a começar pelo direito à informação. A população é mal informada em relação ao que consome. No caso dos transgênicos, foi uma batalha enorme inserir aquele 'tezinho' pequenininho no rótulo em meio a inúmeras informações para demarcar que o produto tem conteúdo transgênico – mesmo assim ainda querem tirar esse ícone. Como eleitor, é importante que o cidadão conheça a plataforma dos candidatos – seja no executivo, seja no legislativo – a propósito de tema tão essencial. Com efeito, há, no Brasil, uma reação importante da população por conta dos danos à saúde provocados pelo consumo de veneno presente em boa parte dos alimentos. E isso tem feito o agronegócio a oferecer, timidamente, alguma resposta, ainda que no plano da retórica.

Em que aspectos a segurança alimentar e nutricional no Brasil precisa avançar? Respondo com uma palavra: democracia, democracia e democracia. O movimento da segurança alimentar e nutricional no Brasil é fruto da redemocratização do Brasil. Nasceu no fim dos anos 1980 com o término da ditadura, avançou durante os anos 1990 e nos anos 2000 e ganhou notoriedade internacional. Existe um campo social da segurança alimentar no Brasil que é interdisciplinar, tem uma visão global, que compreende que as questões têm múltiplas dimensões, exigem programas inter-setoriais e ações integradas. Isso requer participação social. Não é possível explicar as conquistas que o Brasil teve nesse campo, sem atribui-las à participação social, materializada na presença em conselhos, no engajamento e na gestão de programas, no seu monitoramento, na construção de indicadores. Por isso, digo que esses avanços correm perigo, porque a democracia no Brasil foi rompida e, quando ela é rompida, perdem-se a legitimidade e a confiança no outro. Sim, saímos do mapa da fome, mas há setores sociais afligidos pela fome. Saímos do mapa da fome, mas temos um problema crescente de má alimentação, sobretudo por causa do crescimento dos índices de sobrepeso e obesidade. Saímos do mapa da fome, mas continuamos com um modelo agrícola ruim. Temos muito a fazer no sentido de adotar um padrão alimentar diversificado. Temos muito a fazer para construir uma política de abastecimento que promova a soberania alimentar. Enfim, há muito a fazer, e esse tema [segurança alimentar] é permanente em nossa agenda pública.

(Zirlene Lemos/Assessoria de Comunicação da Pró-reitoria de Extensão)

Fonte: Agência de Notícias UFMG