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Nº 1384 - Ano 29 - 13.02.2003

 

 

Cultura não é mercadoria*

Emir Sader**


ntre os grandes desafios que a cultura brasileira tem a enfrentar nos próximos meses, está um de caráter internacional, de cujo desfecho depende, em grande parte, o futuro da nossa cultura. Trata-se da reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC), que pretende legislar sobre a cultura, assim como sobre outros bens essenciais - como a educação, a saúde, os serviços sociais, o acesso à água - com a pretensão de reduzi-los a mercadorias como outras quaisquer, compráveis por quem tem dinheiro. Existe um prazo, o final de março, para que as propostas sejam encaminhadas à OMC, e o governo FHC fez chegar propostas, o que, na prática, significa a aceitação da competência da OMC de legislar sobre o assunto.

Um seminário realizado no Fórum Social Europeu, em Florença, em novembro de 2002, endereçou um apelo a todos os governos interessados na preservação e na expansão dos espaços de pluralismo e de todas as identidades diversificadas existentes no mundo, assim como pela resistência à homogeneização cultural imposta por alguns enormes conglomerados concentrados em poucos países do centro do capitalismo.

Nele se constata como, no domínio das indústrias culturais, essas empresas estão em condições de controlar o conteúdo, a produção e os canais de divulgação das obras. As exigências de rentabilidade de seus acionistas levam essas empresas a não correr riscos, saturando a oferta cultural com um número limitado de produtos apoiados por enormes campanhas midiáticas.

Como resultado, a grande maioria das obras que domina o mercado obedece a critérios estritamente comerciais, em detrimento da criatividade e da diversidade dos conteúdos. A chamada "abertura das fronteiras comerciais", pregada pelas concepções liberais, impede o florescimento dos intercâmbios culturais com todos os países do mundo. Ao mesmo tempo, a memória e a perspectiva histórica são deixadas de lado em favor do imediato e da ausência de concepções críticas e independentes.

Diante dessa situação, é urgente que o máximo de governos possa convocar a elaboração de um instrumento jurídico, fundado numa convenção internacional, que exclua a cultura da lógica de liberalização e mercantilização, como a iniciativa nascida no 2º Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em janeiro de 2002. A Unesco, a Organização Internacional da Francofonia e outras entidades já se pronunciaram nessa direção. Trata-se de elaborar um tratado que afirme que a diversidade cultural é um bem comum da humanidade, e o direito à diversidade é considerado um direito humano. Para garanti-lo, é necessário reconhecer o direito dos estados de agir no plano cultural para proteger seu patrimônio e de apoiar sua criação pelos meios que julguem necessários.

A prioridade das políticas públicas de cultura não deve repousar no apoio a obras que desejam competir nos esquemas comerciais e estéticos dominantes, mas promover uma vida artística e cultural ativa entre a arte e a sociedade, o que supõe que um número cada vez maior de pessoas seja apoiado nos seus desejos de criação, além da expansão dos espaços em que se inventam novas formas.

É necessário que o Brasil adote uma posição firme e clara contra qualquer legislação da OMC sobre os temas culturais - assim como em questões de educação, saúde e serviços sociais, que são direitos essenciais da humanidade. Com essa posição, que tem o apoio dos governos da França e do México, o país poderá mobilizar o conjunto da região na formulação de uma política alternativa, no quadro da Unesco e no marco da reconstrução ampliada do Mercosul. Trata-se de um assunto do Ministério da Cultura e não dos ministérios econômicos, porque não é uma questão de lucro ou de mercado, mas de afirmação da nossa identidade.

Por outro lado, os artistas e todos os trabalhadores do imenso mundo da cultura, suas organizações e os movimentos de educação popular devem lançar uma campanha de informação relativa aos perigos que pesam sobre a diversidade cultural e o seu pluralismo. Devem ser organizadas ações conjuntas em função da próxima reunião da OMC em Cancún, em outubro de 2003, que devem repetir as manifestações de repúdio à globalização neoliberal iniciadas em Seattle.

Que nisto também o novo governo brasileiro seja uma liderança, clara nas suas posições e decidida nas suas formas de ação. Que a cultura seja um campo em que triunfem, já em 2003, a esperança e a criatividade - plural e diversificada como toda cultura democrática.

*Artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 28/1/2003
** Professor de Sociologia da USP e da Uerj