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Nº 1425 - Ano 30 - 05.2.2004

 

 

Desnorteados

José Domingos Fabris *


L'ordre est le plaisir de la raison, mais le désordre est le
délice de l'imagination **
Paul Claudel

 

s razões são certamente múltiplas e complexas, mas a marcante psicologia social do brasileiro tem características que desafiam o senso comum da interpretação. Uma dessas características é certa aversão ao lógico racional. Precaução necessária a um eventual sinal ameaçador que a ordem possa trazer ao mais venerado traço de nossa personalidade: a espontaneidade. Dá a impressão de uma resistência inconsciente ao mote nacional, inspirado na fórmula sagrada do movimento positivista, fundado pelo filósofo francês Auguste Comte: o amor por princípio, a ordem por base e o progresso por objetivo. Muitas evidências concretas resultam de feitos do lado caótico de nosso inconsciente.

O idioma nacional, nosso mais fundamental elemento cultural, é uma dessas evidências. A gramática portuguesa costuma ser motivo de desprezo explícito. Suas regras são às vezes tidas infames, trabalhosas e inúteis, pois bom mesmo é o que sai na hora, do jeito que vem espontaneamente à mente, sem restrições ou censuras. O resultado é o que temos aí: uma linguagem excessivamente plástica, moldada por estrangeirismos e corruptelas. Dá-se, de outro lado, uma busca frenética por referências, não somente idiomáticas, mas também estéticas e morais, de qualquer lugar de fora, bem longe daqui. Falar com mais zelo dessas idiossincrasias do brasileiro requer muito mais espaço e tempo.

É interessante, de todo modo, para ser convincente, pinçar exemplos de nosso cotidiano e ilustrar a idéia da primazia do intuitivo sobre o racional na personalidade de nossa gente. Eis um caso bem ao alcance de nossa observação imediata. A linguagem gráfica, por símbolos especiais, não lingüísticos, é convenientemente usada para comunicar com a população de centros urbanos. Um desses símbolos bastante comum é a seta (-->), usada para dizer ao cidadão "siga nesta direção", no sentido bem claro, indicado a partir da base para a ponta. Racionalmente, para informar a alguém que se deve subir um nível a partir do chão, como para entrar em um ônibus, basta indicar por uma seta, como a do tipo representado na figura (a), o caminho a seguir. O símbolo quer dizer: "a partir do chão (base da seta), suba o degrau (ponta da seta)". O sentido inverso, caminho de saída do ônibus, seria, "obviamente", representado pelo símbolo da figura (b).

(a)
(b)

Se o ilustre leitor for curioso e puder pausar este texto para observar a rua em frente, é só esperar o momento certo em que passa um ônibus e vai constatar as disposições das setas, nas portas de entrada e de saída de passageiros, muito certamente como as das figuras (c) e (d).

(c)
(d)

Na lógica do movimento indicado pela base à ponta da seta, não surpreende a perplexidade do observador curioso, ao imaginar um cidadão vindo não se sabe de onde, do alto, para entrar no ônibus, pela porta traseira (figura d). O ônibus tem, assim, duas entradas: uma vinda do solo, pela porta da frente, outra vinda do alto, pela porta de trás. E não tem porta de saída. Pasme: os ônibus da maioria de nossas cidades indicam assim a forma de circulação de passageiros.

Este caso de linguagem simbólica ilustra, mas, nem de longe, dá a dimensão precisa e completa de nossa lógica caótica. Os exemplos tirados do cotidiano são incontáveis. Refreando o ímpeto de citar tantos, para ficar em apenas mais um, é interessante analisar o projeto urbanístico que o engenheiro Aarão Reis elaborou para a construção da capital mineira no final do século 19. A avenida do Contorno circunda o plano viário principal, com a avenida Afonso Pena direcionada norte (estação rodoviária) - sul (bairro Serra). Ruas com nomes de estados brasileiros e de nações indígenas cortam obliquamente a avenida Afonso Pena, dentro do perímetro da avenida do Contorno. O traçado sugere que a seqüência de nomes tenha sido inspirada na distribuição geográfica dos estados. Ficou assim na seqüência: ruas Maranhão - Piauí - Ceará - Rio Grande do Norte - ... - Espírito Santo - Rio de Janeiro - São Paulo - ... - Santa Catarina - Rio Grande do Sul. Tudo parece ter uma concepção lógica impecável, exceto pelo fato de que a ordem das ruas de Belo Horizonte é invertida, em relação à do mapa do Brasil: a rua Rio Grande do Sul está na borda norte do plano urbanístico e a Maranhão, na região sul. Conscientemente ou não, Aarão Reis deixou a rosa-dos-ventos de cabeça para baixo.


* Professor titular do departamento de Química do ICEx
** A ordem é o prazer da razão, mas a desordem é a delícia da imaginação


 


 

 

 
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