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Nº 1468 - Ano 31 - 13.1.2005

 

 

Em breve, um país dividido*

Yvonne Maggie **

ministro Tarso Genro iniciou o seu mandato em fevereiro de 2004. Dois dias antes da posse e logo depois de ser indicado para o cargo, declarou-se contrário à política de cotas raciais: "As políticas de discriminação positivas não são políticas que necessariamente levem para cotas. Elas podem buscar acabar com a discriminação nas suas fontes. No Brasil, os problemas racial e social estão fundidos. Então, é necessário que se tenha atenção não somente aos negros, mas também ao conjunto de pobres onde evidentemente há um contingente negro. Essa discriminação objetiva que foi produzida em função do sistema social precisa ser corrigida."

No dia 24 de março, disse ainda: "Raça e condição social estão integradas pela estrutura social perversa que herdamos. O ponto de partida é social, mas temos que combinar a reparação para negros. Só não podemos permitir que um negro pobre concorra com um branco pobre e um exclua o outro."

Tarso Genro parece ter sido convencido rapidamente do contrário. Nos meses que se sucederam tomou medidas nas quais pela primeira vez na nossa história introduziu-se o critério "racial" tanto para o acesso ao ensino superior público federal quanto para a concessão de bolsas de estudo e crédito educativo que permitem ampliar a cobertura do sistema privado de ensino superior.

E no dia 10 de setembro instituiu o Programa Universidade Para Todos (Prouni). Nele se estabelece um percentual para negros e outras minorias entre as bolsas que serão ofertadas em troca de isenções fiscais. No caso do crédito educativo, o critério tradicional sempre foi o da carência. Estudantes pobres podiam se candidatar ao benefício. Agora, os negros terão 20% mais chances se conseguirem provar a sua cor. A exigência é que o candidato tenha uma certidão do pai ou da mãe na qual esteja firmada a raça do progenitor.

Para a concessão de bolsas através do Prouni, o estudante também terá que provar, além da carência, a sua cor, assim instaurando o que o ministro dissera que não queria fazer: a concorrência entre "negros" e "brancos" pobres. No projeto de lei enviado ao Congresso, a reserva de vagas nas universidades federais será de 50% para estudantes de escolas públicas e, dentre estas, um percentual de negros (considerados aí pretos e pardos conforme as estatísticas oficiais) e indígenas igual ao da população do estado em que a instituição esteja localizada.

O Brasil até hoje tem-se constituído em um país de legislação a-racial. Esta mudança legal significa que agora os direitos serão atribuídos a partir da definição obrigatória em uma das categorias utilizadas pelo IBGE.

As cotas raciais ao serem introduzidas nos fazem sair necessariamente de um país que se queria misturado e onde a cor dos indivíduos não deveria influenciar a vida do cidadão para entrar no mundo dividido entre "raças". Ou se é negro ou não se é negro legalmente.

Será que o ministro e seus assessores estão pensando nas conseqüências dessa mudança tão radical, esquecendo os seus receios iniciais? Será que os nossos representantes se dão conta de que essa mudança, aparentemente pequena, é um passo muito grande para a criação de um país dividido entre brancos e negros?

Estarão conscientes de que a introdução do sistema de cotas colocará a disputa por vagas em instituições privadas e públicas nas costas daqueles mais pobres que estão estudando em escolas públicas de qualidade duvidosa?

A minha pesquisa nas escolas públicas no Rio de Janeiro revela a dimensão do problema que estará diante de nós nos anos vindouros com os legalmente negros duelando com os legalmente brancos por vagas. Não podemos saber como vai ser o futuro, mas é nossa responsabilidade pensar nas conseqüências possíveis de uma política dirigida para o ensino superior com sérias implicações para a sociedade.

*Artigo publicado em O Globo, de 27 de dezembro de 2004

**Professora de Antropologia do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro

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