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Nº 1472 - Ano 31 - 17.2.2005

/ Silviano Santiago



O ensaísta é como um montador de filmes

Maurício Guilherme Jr.



Silviano: mentalidade de marinheiro

epois de 15 anos, Silviano Santiago, um dos grandes pensadores da cultura brasileira, retorna a um gênero que o consagrou: o ensaio. Na entrevista abaixo, concedida ao BOLETIM, o ficcionista e crítico literário, que recentemente lançou, pela Editora UFMG, a coletânea ensaística O cosmopolitismo do pobre, explica como reuniu os textos da obra, fala de suas atuais preocupações em relação ao país e comenta temas como o multiculturalismo. O livro recém-lançado por Santiago aborda questões como as políticas de globalização e o papel da leitura na formação do cidadão.

Em O cosmopolitismo do pobre , o senhor volta a produzir ensaios. Qual o papel desse gênero em sua trajetória intelectual?

O ensaio se apresenta como um texto escorreito, de feição híbrida. Tem algo da escrita artística e também da escrita científica. Por um lado, falta-lhe a liberdade da arte porque o ensaísta é um leitor que trabalha a partir de exemplos concretos, tomados de outros textos e dos meios de comunicação de massa. Por outro, faltam-lhe os princípios disciplinares da ciência já que o ensaísta é um indivíduo obsessivo que sai em busca do conhecimento multidisciplinar de dada questão. Paradoxalmente, nesta dupla falta está a redenção do ensaio. O ensaio não concorre com a exposição em forma de "drama", típica da ficção, do teatro ou do cinema. É na obsessão opinativa do ensaísta que está a coerência de uma coletânea de ensaios como O cosmopolitismo do pobre. O ensaio também não concorre com a monografia científica, em que a objetividade oriunda de uma bibliografia deve suplantar o caráter subjetivo da interpretação. O ensaio fala de maneira individual e obsessiva sobre a atualidade e deve dialogar com todo e qualquer cidadão que se interesse pelas questões propostas pela realidade nacional e internacional.

Podemos falar de um fio condutor temático _ ou conceitual _ a perpassar os ensaios do livro?

Produto de atitudes obsessivas de reflexão, o ensaio se casa a outro (do mesmo autor) com grande facilidade. Não requer grande engenhosidade para organizar uma coleção de ensaios. A atitude do autor é semelhante à do montador de filmes. Diante das cenas filmadas, é preciso escolher a melhor seqüência para apresentá-las ao público. Pode-se usar uma estrutura semelhante à do flash-back ou uma forma evolutiva, como nos filmes policiais. Optei por uma ordem que, sem abdicar da tradição no debate sobre políticas de identidade e de globalização, abrisse espaço para pensar a questão do pobre no contexto nacional e do migrante no contexto globalizado. Convencionou-se que o pobre tem mentalidade de lavrador, não tem o direito de deixar a imaginação ir além dos limites determinados pelo horizonte. Quis pensar o pobre tão migrante quanto o rico e o diplomata. Ele pode e deve ter a mentalidade de um marinheiro. Suas limitações econômicas não devem restringi-lo às limitações repressivas de uma comunidade, de uma nação.

O senhor é um dos introdutores, no Brasil, dos estudos literários multiculturalistas, que pressupõem interface com outras áreas do saber. Não há risco de a crítica literária perder-se em questões e discussões historiográficas, políticas ou sociológicas?

Tenho mais duas coleções de ensaios para publicar. Nelas devo discutir de maneira mais precisa a questão literária. Esta, independente de estruturalismo ou de multiculturalismo, tem dimensão estética que não deve ser negligenciada pelo ensaísta. A grande questão, como você bem coloca, é a do risco. No campo da arte e das idéias, nada se faz de bom sem risco. Coitado de quem não corre o perigo de ter a sua reflexão estética desviada por uma indagação historiográfica, política ou sociológica. O ensaio não é uma monografia disciplinar, por isso ele corre um risco diferente da produção tipicamente universitária. Ele tem a obrigação, repito, de ser escorreito e abrangente. A abrangência é uma graça e um perigo. É claro que não recomendo o gênero ensaio aos jovens doutorandos. O ensaísta é um velho. Alguém que pode distinguir o flerte da obsessão. Alguém que pode dizer sem medo de errar _ mas correndo todos os riscos _ o que disse o narrador de Guimarães Rosa: "Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue".

O antropólogo Roberto DaMatta diz que o brasileiro vive, junto aos familiares, o que chama de "supercidadania". Ali, o indivíduo se protege do universo da rua, o território da subcidadania. Por outro lado, o trabalho seria o lugar do "castigo". Ainda não desenvolvemos uma forma de diminuir a distância que separa as relações de cidadania no lar, na rua e no trabalho?

Admiro o trabalho do Roberto DaMatta. Sou seu leitor de carteirinha. No entanto, há diferenças essenciais entre o tipo de trabalho que ele faz e o que eu, bem mais modestamente, faço. Ele é um doublé de antropólogo e sociólogo. Sou um mero leitor. É para isso que existem os formados em Letras _ para ler. Como disse Montaigne, que cito no livro, é mais difícil interpretar interpretações do que as coisas. Interpreto interpretações. Nesse sentido, a unidade tripartida lar-rua-trabalho acaba por configurar questões que chamaria de caráter nacional, que me importaram em outros livros, como Uma literatura nos trópicos, e que me importam menos no atual, direcionado que está _ talvez por influência da dobradinha Joaquim Nabuco e Sérgio Buarque _ para a situação do cidadão brasileiro na atualidade globalizada pela economia e pela Internet. Interessa-me o problema do multiculturalismo, não mais da perspectiva da construção de uma nação, mas da perspectiva de construção de um espaço justo e igualitário para os que têm a mentalidade de marinheiros.