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Nº 1473 - Ano 31 - 24.2.2005

 

 

Ernst Mayr e a Biologia autônoma

Rogério Parentoni

ão pouquíssimos os que tiveram o privilégio, como o teve o biólogo- evolucionista Ernst Mayr, da Universidade de Harvard, de acompanhar o desenvolvimento de uma ciência como um dos principais artífices de sua estrutura e ao mesmo tempo como um crítico "sem meias palavras".

Os seus 100 anos de lúcida existência (em suas próprias palavras, devido ao trabalho cotidiano e à ingestão de iogurtes) proporcionaram-lhe a oportunidade de desempenhar com rara competência as atividades de campo e de laboratório necessárias para obter evidências empíricas de suas idéias e de outros colegas e ao mesmo tempo filosofar sobre a história e a filosofia da Biologia, tarefa esta que se concretizou a partir dos 70 anos. Esse privilégio de ser, ao mesmo tempo um ótimo cientista e ótimo filósofo da Biologia, está bem registrado em seu último livro, aliás, uma coleção de ensaios intitulada: What makes biology unique _ considerations on the autonomy of a scientific discipline (Cambridge University Press, 2004, 232 pp., US$ 30.00).

Desde a publicação, em 1859, de A Origem das Espécies , de Charles Darwin, não foram escritos muitos livros importantes que apresentem uma visão abrangente e crítica sobre a evolução como o faz a obra de Mayr. Isso porque pode-se notar certa similaridade, em abrangência, entre A Origem das Espécies e os ensaios do evolucionista. Não obstante a essa similaridade que os destaca no cenário científico, os autores adotam estilos de argumentação totalmente distintos. O cauteloso Darwin, no transcurso de sua obra, que chamou de "um longo argumento", prefere de antemão que fiquem claras as limitações teóricas ou empíricas de sua teoria, para, em seguida, discorrer sobre os pontos positivos que a fortalecem.

Não menos cauteloso, Mayr é direto e de prosa vigorosa. Refuta sem rodeios os numerosos equívocos, inclusive os seus, que foram se acumulando durante o desenvolvimento histórico da Biologia evolutiva. Apresenta, de forma cristalina, não apenas os reais avanços da disciplina, mas também os problemas essenciais sobre os quais os biólogos evolutivos devem debruçar-se. Mayr reconhece, por exemplo, a importância da biologia molecular em proporcionar evidências de que há um único código genético, o que fundamenta a idéia de uma origem comum para todas as espécies de animais e plantas. No entanto, apesar dessa importância reconhecida, ele afirma em seu último livro que a biologia molecular não trouxe qualquer avanço importante que modificasse a compreensão sobre a evolução construída pelos evolucionistas mais importantes do século XX.

A princípio, esse estilo direto e sem rodeios poderia sugerir certa postura típica dos que "argumentam com autoridade". Todavia, não há quem possa negar-lhe um lugar de destaque na galeria dos grandes biólogos de todos os tempos, posição essa bem fundamentada em seus 25 livros e centenas de trabalhos científicos. Dentre os livros, há vários que abordam a filosofia da Biologia, como o abrangente The Growth of Biological Thought , publicado, em 1982, quando tinha 78 anos. Não apenas em virtude de sua copiosa obra, e mesmo concordando ou não com as suas idéias e concepções, Ernst Mayr deve ser lido atentamente sob a perspectiva de que se trata de um dos grandes pensadores biológicos do século XX.

O seu lado filósofo proporcionou análises históricas e epistemológicas da Biologia, ingredientes especiais de sua ampla contribuição ao desenvolvimento científico dessa ciência, pois ajudam a entender porque a Biologia evolutiva deve ser considerada uma ciência autônoma e prescindir totalmente da Física para explicar fenômenos específicos dos seres vivos.

Embora Mayr reconheça a validade para a Biologia de certas leis físicas, quando analisam-se fenômenos atômicos e moleculares, que ocorrem em níveis de organização individual ou celular (por exemplo, fisiologia, biofísica ou bioquímica) ou até mesmo ecossistêmico (fluxo de energia), não há lei alguma na Física que ajude a compreender a evolução. Portanto, as interpretações de fenômenos em nível evolutivo prescindem totalmente da Física. E se concordarmos parcialmente com a célebre frase de outro evolucionista importante, Theodozious Dobhzansky, "nada faz sentido em Biologia a não ser à luz da evolução", a Física não faz qualquer sentido para a compreensão dos fenômenos evolutivos.

A Biologia evolutiva não se baseia em leis, embora a seleção natural possa ter um "status epistemológico" de lei, mas fundamenta-se principalmente em conceitos. Abrange uma variabilidade inexistente no mundo físico: embora cada átomo que constitui um organismo seja igual aos demais, cada ser vivo difere dos demais em características que são específicas do mundo vivo. Por esse motivo, torna-se difícil a elaboração de leis que captem essa ampla variabilidade. Enfim, a Biologia evolutiva é uma ciência histórica que se expressa por meio de narrativas, algumas, por sinal, bastante atraentes, mesmo que suas reconstruções sejam conceitualmente problemáticas.

A Biologia evolutiva é uma ciência autônoma que trata da complexidade própria dos seres vivos que evoluíram a partir de uma origem comum e se diversificaram gradualmente, por meio da especiação, em criaturas adaptadas, por intermédio da seleção natural, a condições ecológicas variáveis.

Apesar de ter-lhe faltado forças para concluir o 26 o livro, sua coleção de ensaios aqui mencionada deve ser leitura obrigatória para todo biólogo e demais interessados em história e filosofia da Biologia. Seu conteúdo certamente levantará a auto-estima dos biólogos, em especial daqueles que aceitam, sem criticar, opiniões errôneas de certos cientistas e filósofos que afirmam ser a Biologia uma ciência de estatura inferior à Física. A Biologia evolutiva é tão importante quanto a Física. Afinal, o que interessa mesmo é a ampliação do conhecimento sobre a natureza. E qualquer ciência autônoma que de fato contribua para isso deverá ter o seu lugar reconhecido.

*Professor do departamento de Biologia Geral do ICB

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