Busca no site da UFMG




Nº 1483 - Ano 31 - 12.5.2005

 

 

O Brasil precisa aceitar que o racismo existe *

Azuzete Fogaça **

 

or pura obra do acaso, a questão racial esteve, em três situações diferentes, no noticiário recente: o pedido de perdão do presidente Lula aos africanos, por conta da escravidão no Brasil; a prisão do jogador argentino que ofendeu um atleta brasileiro negro; e a inclusão, no Censo Escolar do Ministério da Educação, da identificação dos alunos pela cor. As reações a estes fatos dividiram-se, como sempre, entre prós e contras, fato natural em uma sociedade democrática.

Entretanto, o que se observa das críticas contrárias é que elas se apóiam, inicialmente, na naturalização de certos termos aplicados comumente aos negros _ expressões como `neguinho', ou `negão', por exemplo _ porque já fazem parte do cotidiano e seriam `compreensíveis' diante do apelo emocional de um jogo de futebol. Significa dizer que o uso continuado de uma expressão pejorativa e racista faz com que ela deixe de sê-lo e se transforme num termo `cordial'. E assim, no caso de Grafite, tanto a acusação feita pelo jogador quanto a ordem de prisão dada pelo delegado constituiriam um exagero. Aqui, só cabe parafrasear o presidente na visita à Porta do nunca mais: não dá para falar de discriminação; tem que senti-la na pele, para saber o quanto dói.

As críticas ao Censo Escolar negam a existência de racismo no Brasil e consideram que explicitar quem é negro ou pardo é atitude de incitação a um racismo que não temos, porque chama a atenção das crianças para as diferenças físicas e usa um já superado conceito de raça. Ora, o preconceito de cor não se extingue com a negação de diferenças que, de fato, existem, nem com a superação científica de um conceito.

Não falar das diferenças equivale a esconder a realidade; negar o racismo equivale a varrer a sujeira para debaixo do tapete. Ao contrário, o Censo do MEC pode detonar uma discussão que se faz necessária mesmo entre crianças, para que saibam que as diferenças existem e, embora não indiquem a classificação por raças, fazem parte da diversidade humana e não são determinantes de qualquer tipo de inferioridade. Logo, não são justificativas para qualquer preconceito.

Tivemos ainda a indignação dos que consideram que o Brasil não deve desculpas pela escravidão. É claro que se trata de uma atitude simbólica, tal como a do Papa João Paulo II perante o triste papel da Igreja Católica na legitimação da escravidão negra. Ela não muda o passado, mas mostra, pela primeira vez no Brasil, algum interesse das autoridades constituídas em tratar da escravidão e das marcas que ela deixou na sociedade brasileira, sem esconder nem procurar disfarçar uma realidade de preconceito e discriminação contra os negros que se mantém até hoje.

Apesar de termos uma legislação que considera crime a discriminação racial, quando esta é flagrada, buscam-se atenuantes ou justificativas para que a lei não seja aplicada, quase transformando o réu em vítima: o negro que denuncia a discriminação e exige punição está destilando seu racismo contra os não-negros; o delegado que acata a denúncia e cumpre a lei está querendo seus quinze minutos de fama.

Esta atitude é extremamente grave porque desqualifica um instrumento importante para o reconhecimento da dignidade do negro, ainda que não seja a solução única nem final para a promoção da igualdade racial. O preconceito diz respeito a idéias formuladas `a priori' sobre as qualidades físicas, morais e intelectuais de indivíduos, e que conferem a eles uma situação de inferioridade. Pela sua subjetividade, o preconceito é mais difícil de ser combatido e mais demorado para ser desconstruído. Entretanto, qualquer que seja a motivação _ raça, cor, origem, classe social _ o preconceito constitui fator determinante da qualidade das relações entre aquele que se considera `superior' e aquele que é considerado `inferior'. É nessas relações que o preconceito se revela, sob a forma de discriminação.

Orientada pelo preconceito, a discriminação é a ação concreta, que vai desde a afirmação verbal da inferioridade _ os xingamentos, os tratamentos pejorativos _ até as situações de humilhação e as iniciativas no sentido de impedir ou dificultar a comprovação de que essa inferioridade é infundada. Assim, pela sua concretude e objetividade, a discriminação racial pode ser identificada e deve ser combatida, tanto em nome do respeito ao ser humano quanto pelos princípios democráticos que igualam negros e não-negros como cidadãos.

Todavia, as críticas aos episódios recentes indicam que o caminho para o equacionamento da questão racial no Brasil tem algo em comum com o tratamento para o alcoolismo: o primeiro passo para a superação é aceitar que o problema existe.

* Artigo publicado em O Globo, de 22 de abril
** Professora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
Esta página é reservada a manifestações da comunidade universitária, através de artigos ou cartas. Para ser publicado, o texto deverá versar sobre assunto que envolva a Universidade e a comunidade, mas de enfoque não particularizado. Deverá ter de 4.000 a 4.500 caracteres (sem espaços) ou de 57 a 64 linhas de 70 toques e indicar o nome completo do autor, telefone ou correio eletrônico de contato. A publicação de réplicas ou tréplicas ficará a critério da redação. São de responsabilidade exclusiva de seus autores as opiniões expressas nos textos. Na falta destes, o BOLETIM encomenda textos ou reproduz artigos que possam estimular o debate sobre a universidade e a educação brasileira.