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Nº 1488 - Ano 31 - 16.6.2005

 

 

Dignidade ou mercado humano*

Dalmo de Abreu Dallari**

ntes a pessoa humana era vendida por inteiro, como valor de mercado, e a isso se dava o nome de escravidão. Graças ao despertar das consciências, essa degradação foi repudiada e hoje tem proibição formal em tratados e nas constituições. Mas os que colocam seus interesses econômicos acima de qualquer valor ético estão procurando valer-se de artifícios e simulações maliciosas para colocar o ser humano no mercado, sob vários disfarces, inclusive simulando preocupação com o progresso da ciência e com o bem da humanidade: a pessoa é vendida em pedaços, só que com muita sofisticação, utilizando-se como atrativo o anúncio de curas milagrosas, valendo-se do sofrimento e do desespero de famílias para vender como certeza o que sabem ser apenas uma hipótese que um dia talvez venha a ser comprovada.

Num livro dedicado ao assunto, expressivamente intitulado O mercado humano, Giovanni Berlinguer e Volnei Garrafa chamam a atenção para a nova situação resultante de progressos técnicos e científicos, que já vêm acarretando novas práticas, exigindo cuidadosa reflexão. Essas inovações permitem "a remoção, a modificação, a transferência e o uso, em benefício de outras pessoas (sobretudo por motivos de saúde, mas não somente por essa razão) de partes separadas do corpo humano, de gametas, de embriões''. Assinalam esses autores que há uma oferta crescente por parte das empresas bioindustriais, registrando-se, segundo suas palavras, "um acentuado conflito de interesses e de idéias sobre as condições da remoção, transformação e da distribuição de tais materiais, enquanto esses são, ao mesmo tempo, um objeto, que pode tornar-se mercadoria, e um indivíduo, por se constituírem parte ou projeto de um ser humano''.

Paralelamente a isso, os mesmos autores observam que a comercialização de partes do corpo humano é um fato inegável, embora muitas vezes sejam feitas tentativas de disfarce mais ou menos sutis. Eis alguns exemplos: mesmo onde se vende e compra órgãos, usa-se sempre a palavra "doação''; a realização de experimentos científicos muitas vezes utiliza "cobaias humanas remuneradas'', procurando encobrir a remuneração sob vários disfarces; a reprodução assistida já criou um mercado de venda e compra de esperma e de óvulos, assim como também instituiu o útero de aluguel.

O sangue e seus derivados também já foram transformados em mercadoria, devendo-se observar que, em todas essas práticas, uma constante é a situação de fragilidade econômica de quem vende ou aluga parte de seu corpo, sendo beneficiárias pessoas das camadas mais ricas da população. Num importante trabalho apresentado no II Seminário do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, realizado em Lisboa em 1995, Noëlle Lenoir, presidente do Comitê Internacional de Bioética da Unesco, fez agudas observações sobre o que denominou " áreas de urgente reflexão ética''. Entre outras coisas, assinalou que a experimentação sobre seres humanos passou a ser feita com grande intensidade, sendo acompanhada pela mediatização, ou seja, pela exploração exagerada e freqüentemente distorcida dessa experimentação pelos órgãos de comunicação de massa.

Outra peculiaridade por ela registrada foi o fato de que tão logo um teste revele qualquer resultado positivo faz-se a comercialização dos resultados, com altíssimos lucros. Para isso contribuem as associações de doentes - ou seus familiares - quando se trata de doenças para as quais a cura ainda não é conhecida. Mas também aqui somente os mais ricos podem beneficiar-se de eventuais progressos.

É interessante lembrar que um dos mais respeitados geneticistas franceses contemporâneos, Axel Kahn, numa exposição registrada no livro Bioéthique et Liberté, publicado em 2004, chama a atenção para a malícia da expressão "clonagem terapêutica'', freqüentemente usada em alusão a práticas e situações nas quais o que existe é apenas a esperança de obtenção de algum resultado terapêutico, a cura de alguma doença, usando a palavra "terapêutica'' como artifício verbal, para derrubar barreiras éticas, atrair recursos financeiros, ganhar manchetes na imprensa e, afinal, favorecer a comercialização. Em vista disso, propõe o eminente geneticista que "nas revistas internacionais de biologia essa expressão seja substituída por esta outra, mais honesta, `clonagem com finalidade científica', uma vez que se trata, na realidade, de pesquisa científica", cujo resultado não se pode prever com segurança.

Não há dúvida de que a experimentação é importante para os avanços da ciência e pode trazer, como tem ocorrido, grandes benefícios para a humanidade. Mas, em nenhuma hipótese e sob qualquer pretexto ou disfarce, isso deve ser feito tratando as pessoas como coisa ou mercadoria. Tais práticas agridem a dignidade humana e não podem ter o acobertamento das leis nem receber qualquer forma de apoio das autoridades públicas, pois, além de serem antiéticas, são proibidas pelo direito, ofendendo um princípio fundamental consagrado na Constituição brasileira.

*Artigo publicado no Jornal do Brasil, no dia 4 de junho

**Jurista
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