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Nº 1519 - Ano 32
23.02.2006

Aos calouros e aos formandos*

Marília de Abreu Martins de Paiva**

uando lemos, orgulhosos, nossos nomes na lista de aprovados da Universidade Federal de Minas Gerais, uma das mais renomadas instituições de ensino superior do país, sentimos que isso é uma vitória para nós, mas nossos desafios ainda estão por vir.

Alguns colegas calouros ficarão para trás na nossa história, por dificuldades pessoais e financeiras; outros sairão da nossa turma para conciliar estudo e trabalho; outros deixarão a cidade e até o país em busca de outras oportunidades; e, por fim, outros nunca serão, de fato, colegas de faculdade. Alguns veremos mais adiante; outros não veremos jamais, mas ficarão em nossa história como lembrança daquela época de ouro (embora não soubéssemos disso), quando parecíamos muito jovens e acreditávamos ter muita vida pela frente.

O silêncio e a unanimidade serão raros, haverá momentos de radicalismo e de acordo, e tudo isto nos forma, nos torna mais flexíveis, mais conscientes de quando e como somos pequenos, e do quanto o reconhecimento de nossa pequenez nos possibilita ser grandes.

Durante os anos de faculdade, ouvimos, muitas vezes, que fomos “privilegiados” por estudar na UFMG. Admitimos o privilégio de estudar numa universidade pública e de notória qualidade, que confere ao portador de seu diploma, além do grau, identidade, tradição e prestígio. Sabemos que uma porcentagem mínima da população alcança o ensino superior. Que os negros e os pobres, para evitar eufemismos, aqui são minoria. E que a oferta abundante de instituições de ensino superior privadas não têm diminuído o problema, porque ali, sim, a condição para o acesso é necessariamente econômica.

O acesso à UFMG, sem desconsiderar as desigualdades sociais históricas do país, ainda se baseia no mérito pessoal. A Universidade tem, permanentemente, discutido maneiras de minimizar a herança nefasta da escravidão em nossa sociedade e implantado, internamente, ações positivas neste sentido. O caminho a percorrer, por toda a sociedade, é longo e urgente, e a UFMG não tem se furtado a esse trabalho. Mas o desafio de mudar a sociedade é de cada um de nós, todos os dias, seja qual for o nosso nível de escolaridade ou profissão.

Ingressar e formar-se na UFMG são privilégios dentro de nossa sociedade, mas não podemos deduzir daí que todos os estudantes da UFMG sejam social e economicamente privilegiados. A dedicação aos estudos, muitas vezes conciliada a duras penas com o papel de trabalhadores e chefes de família, afeta a energia, o tempo e os recursos materiais de muitos estudantes da UFMG – que lutam, contra todas as dificuldades, para realizar o sonho de fazer aqui o curso superior.

Para concluir sobre nosso desafio como calouros, formandos, cidadãos e profissionais, gostaria de falar de uma teoria que desenvolvi durante as reflexões no curso – a reflexão deve ser permanente – e que poderia chamar-se Teoria das Cadeiras. Esta teoria é uma metáfora do mundo e, como toda metáfora, é grosseira.

Segundo minha teoria, existem dois tipos de gente: o primeiro tipo acredita que o mundo está perfeito, e só falta arranjar uma cadeira pra sentar. No dia em que ele se sentar, pronto: o mundo estará mais-que-perfeito. Se a sua cadeira for estofada, então, nem se fala! Esse tipo de gente nunca vai refletir, nunca vai fazer perguntas sobre as cadeiras. Se sua cadeira for de rodinhas, reclinável e forrada com couro, ele não se perguntará que couro é aquele, se por acaso não é lombo de humanos. Esse tipo não só ocupa sua cadeira, como põe o pé em outra e a bolsa em mais outra, guardando lugar para amigos e familiares. Pode até se passar por idoso ou grávida para conseguir um assento.

O segundo tipo de gente percebe, desde logo, e até mesmo antes de assentar-se, que não há cadeiras pra todos. E, mais, que entre as cadeiras todas, há enormes desigualdades. Há tamboretes desequilibrados, cadeiras que são verdadeiras poltronas e, inclusive, tronos. Essa gente percebe, então, que não basta brigar por um assento. É preciso reforçar as cadeiras mais frágeis, buscar materiais alternativos, construir novos assentos, transformar os tronos em berços ou, talvez, reservá-los aos muito idosos ou aos que sentem dor.

Caríssimos colegas, novatos e formandos: ao tomarmos assento no mundo, não deixemos de refletir, de fazer perguntas; não nos acostumemos ao fato de que faltam cadeiras e pronto; não nos esqueçamos dos que estão excluídos, absolutamente. Não aceitemos, em troca de nosso silêncio, um tamborete barato ou mesmo uma cadeira estofada, cuja madeira vermelha pode não ser pau-brasil, mas umidade de sangue e injustiça. Os tronos – bem, os melhores humanos não se assentaram em tronos – vamos deixar pra Deus, apenas. Sempre haverá quem recuse uma cadeira, mas essa recusa deve ser um ato de sua vontade, não uma condenação. Sobretudo, que nos assentemos somente nas cadeiras que nos couberem por trabalho e mérito próprios, sem nos furtar da responsabilidade que teremos – tanto maior quanto mais confortável seja nosso assento.

Só mais uma sugestão de uma bibliotecária: quando ocupar sua confortável cadeira, pegue um bom livro pra ler!

** Parte de discurso proferido durante a cerimônia de colação de grau da turma de Biblioteconomia-Diurno, formada no primeiro semestre de 2004

** Ex-aluna da UFMG e bibliotecária do Carro-Biblioteca, da Escola de Ciência da Informação

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