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Nº 1533 - Ano 32
01.06.2006

Noronha Peres, o homem
de Manguinhos, Harvard e UFMG

João Amílcar Salgado*

onheci José Noronha Peres depois de ter cursado Microbiologia na graduação da Faculdade de Medicina da UFMG. O professor Almeida Cunha, após ministrar o curso, se aposentou. Peres havia chegado de Harvard e logo seria o novo catedrático. A curiosidade sobre o que trazia nos levou a freqüentar seu curso, voluntariamente. Sua influência já se exercera no curso do antecessor, por meio do programa de gastroenterite executado, em convênio, nos laboratórios microbiológicos da Faculdade, do qual minha turma participou ativamente.

As sucessivas turmas passaram a ver nele não só o grande cientista, mas um líder sobre questões da universidade. A independência com que se manifestava tornou Noronha Peres respeitado não só pelos estudantes, mas também por docentes e funcionários.

Na crise estudantil da invasão da Faculdade de Medicina, no mesmo dia da invasão da Sorbonne, em 3 de maio de 1968, lá estava ele ao lado dos estudantes. E, junto com Amílcar Martins e Carlos Diniz, correu altos riscos para que o tumulto se resolvesse, sem o trágico desenlace pressentido por todos. Na criação do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, ele levantou várias questões, e o tempo se encarregou de mostrar a pertinência de suas dúvidas.

Com sua equipe, Noronha Peres criou excelente pós-graduação, da qual tive o privilégio de usufruir, quando cursei o mestrado e o doutorado afins de Medicina Tropical. Após a aposentadoria, ele passou a colaborador do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, amplamente enriquecido por suas sugestões, doações e aulas – formais e informais – próprias de autêntico scholar.

Esse centro resguarda dados de sua formação de homem ao mesmo tempo de Manguinhos e de Harvard e também de sua incursão pela indústria. De fato, houve época em que Manguinhos representava o modelo europeu a ser superado pelo paradigma norte-americano. A tipicidade da personalidade de Peres sempre foi a de desconhecer clichês, tanto que, sendo duplamente homem de Manguinhos, da filial de Minas e da matriz do Rio, ele foi direto para a matriz do padrão estadunidense.

Levou do Brasil o que melhor havia de atitude científica, rigor metodológico e capacidade investigativa. A tradição, que vinha do grupo inicial de Osvaldo Cruz, segundo a qual não há diferença entre o laboratório e o campo, impregnou Aroeira Neves, Amílcar Martins e Noronha Peres, seja examinando nossas águas minerais, seja se embrenhando em nossos sertões, para surpreender pestilências medievais ou endemias regionais. Quando partiu para os Estados Unidos, ele já estava maduro para ser o eficiente auxiliar de John Enders, desbravador do caminho para as vacinas modernas e coincidentemente vencedor do prêmio Nobel de 1954, pouco antes da chegada do brasileiro. Lá, Peres mergulhou na vanguarda da virologia.

Ao se despedir do pesquisador mineiro, o cientista norte-americano agradeceu-lhe a contribuição substancial, especialmente no cultivo de vírus em células amnióticas humanas. Por sinal, Noronha Peres regressou quando a epidemia de gripe asiática o desafiou a confeccionar nossa primeira vacina antiinfluenza. O brilho de seus discípulos na bacteriologia e na virologia mostra a linhagem implantada por ele no País.

O Centro de Memória da Medicina acumula as histórias de clínicos e cientistas que chegaram à universidade já iniciados junto a boticários de velha têmpera. Pois bem, a iniciação de Peres na farmácia de seu avô, Antônio Antero Peres, em São Sebastião do Paraíso, não pode ser furtada ao êxito do cientista. O crédito a esse boticário sulmineiro deve ser, com justiça, consignado até mesmo sob o pálio de Harvard, já que esta é um monumento à luminosa fusão entre tradição e modernidade.

Meio farmacêutico desde menino e sabendo que o País não podia dar-se ao luxo de cientistas apenas básicos, Noronha Peres se lançou na indústria bacteriológica, a partir da enorme carência brasileira em produtos veterinários de qualidade. Enquanto participou de tal experiência, ele demonstrou como essa atividade pode ser exercida “na plenitude da ética e na ausência total de ganância”.

Ao perdê-lo, nós, seus discípulos e admiradores, não podemos deixar de homenagear esse herói da ciência e da docência, gigante da modéstia e da bondade.


O professor José Noronha Peres morreu no dia 20 de maio, aos 93 anos. Mineiro de São Sebastião do Paraíso, formou-se em Medicina pela UFMG em 1935 e seis anos depois ingressou como professor assistente da Faculdade de Medicina.

Livre-docente em Medicina (1948) e Farmácia (1951), foi empossado como professor catedrático de Microbiologia e Imunologia da Faculdade de Odontologia e Farmácia da UFMG. Em 1955, mudou-se para os Estados Unidos para trabalhar, em Harvard, no laboratório do pesquisador John Enders, agraciado um ano antes com o Prêmio Nobel de Medicina. Em 1960, tornou-se professor catedrático de Microbiologia da Faculdade de Medicina da UFMG. Em 1969, recebeu o título de professor emérito da Faculdade de Farmácia, também concedido em 1985 pelo ICB.

Ele foi casado com Dulce Clark Peres com quem teve quatro filhos, três dos quais professores da UFMG. Antônio Eduardo Clark Peres, da Escola de Engenharia; Odília Clark Peres Rabello, da antiga Escola de Biblioteconomia (atual Escola de Ciência da Informação), e Ana Maria Clark Peres, da Faculdade de Letras.

* Professor titular de Clínica Médica da UFMG e pesquisador em história da medicina

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