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Nº 1554 - Ano 33
30.10.2006

Breve guia a espetáculos de crescimento*

José Eli da Veiga**


s convenções necessárias para que o crescimento econômico pudesse ser medido pela variação do PIB foram adotadas há meio século por algumas nações. Isso ocorreu no contexto do pós-Segunda Guerra Mundial, absolutamente marcado pelas reconstruções européia e japonesa.

O Manual de Contas Nacionais 1953, das Nações Unidas, conserva a carga dessa gênese, apesar de ter sido revisto em 1968 e 1993. É bom lembrar, entretanto, que o crescimento intensivo, com aumento do produto per capita, já vinha ocorrendo em várias partes do mundo há mais de um século. E que dez milênios antes seu embrião já se tornara o fator mais decisivo do desenvolvimento das sociedades humanas, com o advento da produção de alimentos, no contexto da revolução neolítica, radical ruptura com o padrão de vida dos cem milênios anteriores. Ou seja, até a segunda revolução econômica da história da humanidade, com casamento da ciência com a tecnologia, por mais de dez mil anos, o crescimento foi muito mais extensivo que intensivo, pois o produto raramente superava o aumento populacional.

Foram mais documentadas justamente algumas poucas fases de crescimento intensivo, alicerces do que se convencionou chamar de civilizações. Nada disso pode ser ignorado quando se usa o PIB para medir o crescimento econômico. Basta que se visite alguma das raras histórias da contabilidade social para perceber o quanto já são obsoletas as idéias que mais influenciaram as convenções estabelecidas há 50 anos. Ou o quanto mudou o panorama sociopolítico que condicionou as arbitragens.

O anacronismo do PIB como medida do crescimento pode ser ilustrado por alguns exemplos. Armas de destruição são tratadas como investimento porque sua oferta deveria ser vista como uma prestação de serviço de defesa nacional. Tudo se passa como se operações militares fossem processos de produção.

Na mesma toada, acidentes, como os derramamentos de petróleo ou atropelamentos, fazem com que o PIB aumente em vez de diminuir, devido a incrementos de atividades produtivas que serão incentivadas por consertos, reparações ou cirurgias. Mas atenção: somente nos casos que envolverem operações mercantis mone-tizadas. O trabalho voluntário, por mais que contribua, não altera em nada esse cálculo. Desconsideração idêntica à referente ao trabalho doméstico das "zilhões" de mães que garantem a reprodução das famílias. Aspecto que levou à velha piada sobre a redução do PIB motivada pelo casamento de um cavalheiro com sua ex-doméstica ou caseira.

Todavia, a marca da gênese é mais profunda. Ao se interessar apenas por fluxos, o PIB fecha os olhos para a depreciação de cruciais estoques, como os de recursos naturais. Enquanto um país estiver devastando sem piedade suas florestas nativas, o PIB dará um show de crescimento. Enquanto uma economia estiver bem livre de sistemas de proteção ambiental (com leis, fiscais, procuradores e policiais), o PIB poderá aumentar muito mais do que em outra em que inexistirem essas travas ao espírito selvagem dos empreendedores. O PIB também não considera a acumulação de todas aquelas coisas que têm sido classificadas como bens intangíveis: cultura, instituições, confiança entre os agentes ou mesmo direitos humanos.

Enquanto uma economia estiver tirando bom proveito mercantil de formas de trabalho “escravo” e infantil, ou simplesmente de trabalhadores sem quaisquer direitos ou proteção social, seu PIB poderá aumentar mais rápido do que noutra em que direitos civis e alguma legislação trabalhista estejam garantidos por fiscalização ou funcionamento do sistema judiciário.

Basta pensar nesses fatos civilizadores para entender por que a progressão do PIB da China tem sido tão grandiosa. Por lá não há Ibama, Cetesbes, procuradores, promotores, ou mesmo juízes, que tentem evitar os piores impactos ambientais de qualquer investimento. Lá não há limite aos acidentes de trabalho em milhares de minas de carvão que lembram as condições de vida do proletariado inglês no século XVIII. Lá é o cinza da poluição atmosférica que encobre o vermelho de uma ditadura tecnocrático-militar que bota tanques na rua para esmagar estudantes ou seitas religiosas inconformadas.

Mas não é apenas no cotejo com a China que as mazelas do PIB ajudam a qualificar a comparação entre as taxas de crescimento dos emergentes. É importante lembrar que, por aqui, elas também foram majestosas enquanto se devastava sem quaisquer restrições os biomas mais próximos do litoral, e enquanto se promovia um dos mais gigantescos êxodos rurais da história da humanidade. Foram essas as bases dos tão badalados aumentos do PIB obtidos no Brasil até o começo da década de 1960, ampliadas, claro, pela irrespon-sabilidade fiscal, cujo preço ainda será pago por gerações. Esgotado esse estilo, veio a crise e a ditadura militar. E o “milagre econômico” (1968-73) não passou de sua derradeira turbinagem. Combinada a fácil endividamento externo, estendeu seus efeitos até 1980. Quer isto dizer que o Brasil está condenado a se conformar com o melancólico aumento do PIB per capita do último quarto de século? Aceitar média anual de 0,8%, inferior até aos 0,9% do México? De jeito nenhum.

Mas é preciso ter presente que, não podendo mais contar com atroz exploração predatória de recursos naturais e humanos, o PIB brasileiro só voltará a aumentar com firmeza quando surgirem os efeitos de imprescindíveis investimentos em inovação, umbilicalmente dependentes de avanços na educação científica e dos demais coringas intangíveis que têm sido chamados de capital humano e capital social. Antes disso, talvez até se consiga algum surto, com as proteladas reformas previdenciária, fiscal, tributária etc.

Mas sem os impactos inovadores de um poderoso sistema de C&T, não adianta sonhar com um Brasil em que o obsoleto PIB possa crescer de forma durável a taxas robustas. Quando a sociedade brasileira der à educação científica importância equivalente à que confere ao futebol e ao carnaval, ainda esperará algumas décadas por um tipo bem melhor de espetáculo de
crescimento.

*Artigo publicado no jornal Valor Econômico, de 23 de outubro
**Professor do departamento de Economia da Faculdade de Economia e Administração da USP

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