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Nº 1574 - Ano 33
23.4.2007

Machado de Assis
Machado de Assis

O caramujo e a escravidão

Antologia de poemas, contos e trechos de romances revela olhar afro-descendente de Machado de Assis

Maurício Guilherme Silva Jr.

 

"Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a lei, que a regente sancionou, e todos saímos à rua. Sim, também eu saí à rua, eu o mais encolhido dos caramujos, também eu entrei no préstito, em carruagem aberta, se me fazem favor, hóspede de um gordo amigo ausente; todos respiravam felicidade, tudo era delírio. Verdadeiramente, foi o único dia de delírio público que me lembra ter visto."

C

inco anos após sancionada a abolição da escravatura no Brasil, um nobre “caramujo” resolve escrever as bem talhadas linhas acima. Na descrição da alegria popular pela conquista da liberdade, em crônica publicada em 14 de maio de 1893, fica evidente o olhar fascinado de um Machado de Assis ainda pouco conhecido – e discutido – por leitores e crítica especializada: o escritor comprometido com o debate da questão escravocrata.

Essa lacuna acaba de ser preenchida com coletânea de textos daquele que, para muitos, é o maior autor brasileiro. Com seleção, ensaio e notas do professor Eduardo de Assis, da Faculdade de Letras (Fale) da UFMG, Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo (antologia) reúne poemas, contos, crônicas e ficção romanesca em que o escritor aborda, direta ou indiretamente, a escravidão e as relações inter-raciais do Brasil no século 19.

“Há setores da crítica e da intelectualidade brasileira que o consideram omisso em relação à escravidão e à campanha abolicionista”, ressalta o pesquisador, que coordena, na Fale, o projeto Afro-descendências: raça/etnia na cultura brasileira. Segundo ele, a obra machadiana é acusada de “não tratar do mundo do trabalho, especialmente da exploração da mão-de-obra escrava”. Há quem aponte a ausência de um “herói negro” ou, ainda, o “aburguesamento” e “denegação das origens” na obra do autor.

Escravidão iníqüa

A obra recém-lançada reúne textos que desmentem a tese da omissão. Além de grande presença na imprensa, onde Machado de Assis discute, sob pseudônimo, a “iniqüidade da escravidão”, o escritor comprova seu esforço contra a discriminação aos afro-brasileiros também na literatura. “Em poemas, contos e histórias retiradas de romances, os afro-brasileiros são tratados de forma digna e sensível, nem mais nem menos humanos do que os brancos que os oprimiam”, explica Eduardo de Assis.

Para escolher os textos da antologia, o professor seguiu critério temático que o levou ao estudo das relações inter-raciais na obra de Machado. “Há aspectos pouco explorados, como o motivo literário da morte do senhor de escravos, presente em Helena, Memorial de Aires, e, sobretudo, Memórias póstumas de Brás Cubas”, explica o pesquisador.

Nas referidas obras, os senhores de escravo morrem ao longo do enredo. E na obra-prima Dom Casmurro, a morte do senhor marca o início da narrativa, “revelando um mundo de viúvas e herdeiros que, via de regra, não conseguem dar prosseguimento à acumulação de capital oriunda do trabalho escravo”. Machado de Assis traça um grande painel da decadência da velha família patriarcal escravista oriunda dos tempos da colônia”, diz Eduardo de Assis.

Trajetórias

Neto de escravos alforriados e nascido livre em 1839, no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro, Joaquim Maria Machado de Assis trabalhou como balconista e operário gráfico. Mulato, autodidata, passou da oficina à redação e daí ao emprego público e à literatura. “Ele ocupou cargos de confiança no governo imperial e viu muitos serem perseguidos por terem se manifestado contra a escravidão”, conta Eduardo de Assis.

Não há registros de que o escritor tenha participado abertamente de movimento em prol dos afro-descendentes. Além disso, a ficção machadiana se volta para os leitores da elite. “Machado de Assis nunca foi um homem do confronto nem pôs mártires da escravidão em seus textos, como faz Castro Alves. Seu projeto literário é outro, e se marca pela carnavalização e o ceticismo, o que praticamente descarta a presença de heróis”, completa o professor.

  Livro: Machado de Assis afro-descendente: escritos de caramujo (antologia)
Seleção, ensaio e notas: Eduardo de Assis Duarte
Editora: Pallas e Crisálida
Páginas: 288
Preço: R$ 38