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Nº 1574 - Ano 33
23.4.2007

A ciência transcendental*

Eduardo Viveiros de Castro**

N

ão fossem as impecáveis credenciais de seu autor, Promessas do Genoma seria talvez indiciado como um ataque solerte à ciência, mais uma tentativa de desacreditar a razão; quem sabe até Marcelo Leite não seria um agente provocador dos criacionistas? Deus nos livre.

Se o livro for lido assim, será uma pena. Pois, muito ao contrário, ao dissecar o imaginário articulado em torno do Projeto Genoma Humano (PGH), da biotecnologia e da idéia de determinismo (genético ou tecnológico), ele presta um serviço precioso à ciência. Presta também um serviço à profissão que é a sua, quando, ao dar um puxão de orelhas nos cientistas que difundem uma visão grosseiramente triunfalista da biologia, mostra como isso não acontece sem a complacência ativa da mídia especializada.

Esse papel pouco brilhante do jornalismo científico na história do PGH se explica não apenas pela busca do sensacional, mas por algo mais profundo, uma credulidade de princípio. “São nos conceitos biológicos que residem os últimos vestígios de transcendência no pensamento moderno". A observação, feita por Claude Lévi-Strauss em 1947, quando mal se despertava do pesadelo nazista, continua pertinente em 2007.

Primeiramente, porque a tentação (ou promessa) do eugenismo, a que a biologia moderna jamais esteve de todo imune, só fez ficar mais sedutora (mais circunspecta, mais operacional) com a hegemonia alcançada pela biologia molecular nos últimos 30 anos. Em segundo lugar porque, uma vez as teorias da física tendo se tornado intuitivamente opacas, coube à biologia molecular assumir o papel de ciência prototípica para o “público”, vasta categoria que inclui os governantes, as agências financiadoras, a imprensa e a academia.

O poderoso dispositivo do determinismo, aperfeiçoado pela física clássica e convertido (ao cabo de um processo histórico não-determinista) em signo supremo de cientificidade, passou às mãos da biologia molecular.

É aqui, como mostra Leite, que está o xis do problema. Pois não é na biologia enquanto tal, mas no determinismo enquanto esquema epistêmico, que residem os “últimos vestígios da transcendência” na modernidade. Como pode ser verificado, aliás, toda vez que outras transcendências contemporâneas são estigmatizadas como “pré-modernas”, “tradicionalistas” ou “fundamentalistas”.

O Projeto Genoma Humano, a encarnação tecnocientífica dessa categoria moderna da transcendência, foi vendido (literalmente) como o início da ascensão para o milênio biológico, quando a humanidade se tornaria finalmente transparente para si mesma: do “Gênesis” ao gene, cumprir-se-ia enfim o destino paradoxal da espécie, o de controlar as condições de sua própria criação; pouco importa, ao que parece, que tal desiderato bata de frente com a teoria darwiniana.

Não é certamente por acaso que o título do livro associe o PGH à noção de “promessa”, cara à soteriologia cristã; a biologia encontra-se muito próxima, do ponto de vista de uma topologia política das idéias, da religião. O “Dogma Central”, o “Livro da Vida”, o “Código-Mestre” não fazem má figura ao lado dos personagens mobilizados pelo criacionismo, o mais recente tradicionalismo secretado pelo sistema sociocultural que gerou e sustenta a Big Science.

É curioso que a primeira declaração do cardeal Ratzinger ao assumir o trono de São Pedro [tornando-se o papa Bento 16] tenha sido uma diatribe contra o relativismo, a diabólica arma de desconstrução em massa de posse dos libertinos, dos nietzschianos, dos construcionistas, dos pós-modernos e demais servos do mal, que são, como se sabe, uma legião. Quanto a isso, Dawkins e Dennett, dois dos mais ferozes “buldogues de Darwin” em atividade, concordariam entusiasticamente com o “rottweiler de Deus”.

Mas, felizmente, a biologia “para dentro” é muito diferente da biologia “para fora”. A contribuição fundamental do livro de Leite, além de sua implacável dissecação de algo que só pode ser chamado de propaganda científico-midiática enganosa, consiste em acertar o passo entre a imagem pública da biologia e o que está acontecendo dentro dela, e que é uma lenta, gradual, mas firme convergência entre a biologia experimental e certas teses críticas desde cedo dirigidas ao PGH e a seu substrato metafísico-dualista por pensadores como R. Lewontin, S. Oyama, S.J. Gould e E.F. Keller, entre outros.

O autor mostra como a dificultosa coabitação entre uma genética molecular constitucionalmente pré-formacionista e a revolucionária teoria da evolução darwiniana começa a ruir com a falência da imagística gerencial-informacional (código, programa, controle), o abandono progressivo da dicotomia gene/ambiente e a emergência de uma biologia do desenvolvimento, radicalmente imanentista, ateleológica e não-determinista. Uma biologia, enfim, que não está mais sob o controle da idéia de controle. Quem sabe assim poderemos deixar de temer que a sigla MBA venha um dia a significar “Master of Biological Administration”.

*Artigo publicado na Folha de S. Paulo, de 1o de abril de 2007 **Antropólogo no Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro

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