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Nº 1576 - Ano 33
7.5.2007

Nosso retrato em preto e branco*

Mariluce Moura**

S

ejamos simples e breves. Ou ao menos, vamos tentar sê-los: em termos genéticos, há uma tal mistura, uma tal miscigenação na população brasileira, para o bem ou para o mal, que simplesmente não dá para falar em distintos grupos étnicos ou raciais neste país. Ou, no limite, deveríamos ter que falar em 186 milhões de grupos na população brasileira, dentro da qual cada indivíduo se torna, ele mesmo, um grupo.

O respeitado geneticista Sérgio Danilo Pena, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), explicava isto na noite de ontem para uma platéia miscigenada na livraria Cultura no Shopping Villa-Lobos, em São Paulo, com uma secreta esperança, arrisquemos assim, de que essa constatação pudesse conter uma solução nova para as torturantes dúvidas que atravessam toda tentativa de estabelecimento de um conceito consistente de identidade para o povo brasileiro. Em frente a ele, o lingüista e poeta Carlos Vogt, entre outras facetas, um estudioso da difusão e da persistência das tradições lingüísticas quimbundo no Sudeste brasileiro, agitava-se em sua poltrona no auditório da livraria, mal podendo conter a necessidade de retorquir de pronto que exatamente esse era o problema – o grande problema, melhor dizendo, o grande nó – desta nação chamada Brasil.

Sérgio Pena estava ali a propósito de suas mais recentes revelações, cientificamente embasadas, sobre a origem territorial dos africanos tornados escravos que aportaram ao Brasil entre os séculos XVI e XIX, tema principal da reportagem de capa da revista Pesquisa Fapesp deste mês de abril, elaborada pelo jornalista Ricardo Zorzetto. Vogt, que no terreno da busca incessante das contribuições da África para a formação cultural do Brasil, tem íntima relação, por exemplo, com os suportes intelectuais do filme Cafundó, de Paulo Betti, para ficar apenas numa peça recente de circulação mais aberta e conhecida, menos acadêmica, desses esforços de iluminação de fundamentos às vezes bem escondidos da cultura nacional, tinha ali a missão de apresentar Pena à platéia. Prometia ser instigante o encontro dos dois, com suas convergências e diferenças, um mais liberal outro mais social-democrata, com uma certa licença poética dessa velha terminologia; um, desconfiado da política de cotas, mas disposto a atestar com base em exames científicos a ancestralidade africana de uma moça de pele branca que se sentiu prejudicada numa seleção baseada em origem racial na Universidade de Brasília (UnB), o outro, defensor de primeira hora da política de cotas raciais na universidade brasileira.

Depois de apresentado por Vogt, Sérgio Danilo Pena literalmente arrastou um bom tempo a pequena platéia, fascinada, galvanizada, por entre viagens transcontinentais iniciadas possivelmente há 70 mil anos, e que em algum momento, entre 15 mil e 20 mil anos atrás, trouxeram à América entre cem e mil criaturas que começaram a povoar fantasticamente esse continente – até garantir a presença de 50 milhões de ameríndios nesse vasto território no século XVI, no tempo da chegada dos colonizadores europeus ao continente. O geneticista mineiro repassou a partir daí, em traços largos, alguns dados conhecidos da formação do povo brasileiro, apresentou muitas outras tabelas pouco difundidas da composição da população local desde o século XVII, para depois detalhar o que tem revelado 14 anos de suas pesquisas genéticas sobre a população deste país.

Sérgio Pena, mexendo com a genética como se fora uma máquina do tempo, tem trabalhado simultaneamente com o cromossomo Y, que conta histórias da linhagem paterna de populações, e com o DNA mitocondrial, revelador extremamente indiscreto da matrilinhagem. E com essas ferramentas ele pouco a pouco vem traçando, desde o começo dos anos 90, um retrato do branco brasileiro, um retrato do índio brasileiro e, mais recentemente, um retrato do preto brasileiro, com a expectativa, até aqui parcialmente realizada, de assim desvendar um verdadeiro retrato genético desse tão misturado povo que hoje constituímos. Registre-se aqui que preto é palavra usada pelo IBGE oficialmente para classificar as pessoas de pele escura, enquanto negro é uma palavra mais aberta que envolve os chamados pardos e pretos.

As investigações do geneticista mineiro, entre muitos outros achados, dão total apoio genético a interpretações como a de Gilberto Freyre, que mostram o povo brasileiro em grande parte formado por pais eurasianos e mães africanas e índias. “Comprovamos geneticamente uma triste história de opressão social e sexual das mulheres índias e negras na formação de nosso povo”, enfatizou a certa altura Pena na noite de ontem. Como se sabe disso? É fácil: medindo-se o as variantes do cromossomo y nos autodeclarados brancos e negros da atual população brasileira e medindo-se também as variantes do DNA mitocondrial nessa população.

Sérgio Danilo Pena, depois de lembrar que, dentre os 25 mil diferentes genes conhecidos do genoma humano, apenas de seis a oito determinam a cor da pele, e menos de 20 são responsáveis pela aparência física, insistiu que vasta maioria dos brasileiros, independentemente da cor da pele de cada um, tem grande ancestralidade comprovada africana, ameríndia e européia. Um preto brasileiro é bastante europeu em sua ancestralidade e um branco brasileiro é bastante africano e bastante ameríndio em sua ancestralidade. E daí, isso é problema ou solução para nossa imagem como nação? A questão permanece em aberto. E é difícil , muito difícil, que puras constatações científicas possam orientar corretamente sábias decisões políticas ou embasar consistentes visões culturais, como lembrou o próprio Sérgio Danilo Pena. Mas elas são excelentes para alimentar reflexões sem preconceitos.

*Artigo publicado no Blog do Noblat (www.blogdonoblat.com.br) no dia 26 de abril

** Jornalista, é diretora de redação da revista Pesquisa Fapesp

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