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Nº 1604 - Ano 34
04.04.2008

Os viajantes do Carro-Biblioteca
e sua felicidade clandestina

Marília de Abreu Martins de Paiva*

Há 35 anos, praticamente todos os dias, sai o Carro-Biblioteca do campus Pampulha em direção a algum bairro da Grande BH. Já visitou comunidades em Contagem, Nova Lima, Ibirité, Vespasiano, Raposos, Santa Luzia, Sabará, Ribeirão das Neves, Betim, Sarzedo – além de bairros da capital. O projeto começou em 1973, quando o extinto Instituto Nacional do Livro (INL) doou uma Kombi com 1.500 livros à Universidade. Ainda hoje o Carro-Biblioteca sai, diariamente, levando acervo e serviços de uma biblioteca pública a cinco diferentes bairros da Grande BH.

O projeto de extensão da Escola de Ciência da Informação, o segundo mais antigo da UFMG, funciona hoje com um veículo novo, mas continua levando livros, revistas, gibis e jornais, gratuitamente, para quem quiser ler, conhecer, saber, ter prazer. Nas estantes do Carro-Biblioteca, em conformidade com a natureza plural e tolerante das bibliotecas públicas, repousam, à espera de seu leitor, Voltaire e Cebolinha, Simone de Beauvoir e Sabrina, Paulo Leminski e Paulo Coelho, e centenas de outros autores e personagens da ficção e do quase irreal mundo humano e desumano.

Ranganathan, o mestre dos bibliotecários, nos ensinou uma lição valiosa: “para cada leitor, seu livro” e “para cada livro, seu leitor”. Os gibis, de vida curtíssima, sofrem com o amor físico das crianças: são revirados nas caixas, dobrados em dois, em três, lambidos nos cantos, sujam-se de comida, são mordidos por amáveis cães de estimação – pois as crianças partilham de tudo com seus amores. Os best-sellers, devorados por tantos leitores, não param nas estantes: lidos, relidos, colados, recosturados, seguem sua vida insana, volátil, cada dia na casa de um leitor.

Os clássicos, em calma sabedoria, esperam um pouco mais, às vezes bastante, precisam ser aspirados... Mais cedo ou mais tarde chega um leitor, rastreia a prateleira com olhos e dedos, e pergunta: “Você tem Memórias póstumas de Brás Cubas? ou “Você tem Orlando?" Todos os dias tem alguém querendo ler o best-seller do mês, mas sempre haverá alguém querendo ler os clássicos, de qualquer época. Assim tem nos mostrado a experiência no Carro, como o chamamos na intimidade.

Engana-se quem presume o que pode querer um usuário de uma biblioteca pública. Há mulheres e homens que querem ler romances água com açúcar porque estão solitários; há os que querem os mesmos romances porque estão felizes no amor. A crítica é livre: uma senhora que nunca freqüentou uma escola regular, mas lê pelo menos dois livros por semana, nos devolve O vermelho e o negro, de Stendhal, com o veredicto: “Isso é uma porcaria!” Um homem de meia-idade, em geral alcoolizado, mas pontualíssimo e cordial, pergunta toda semana: “Você trouxe o Ulisses?" Quem vê esse homem não presume que ele possa ler Érico Veríssimo, Mário de Andrade, Hemingway... e lerá, em breve, o Ulisses que levaremos para ele.

Um rapaz de maquiagem nos olhos e cabelos escovados cobrindo um olho (que nosso estagiário Josué logo identifica como emo) quer ler livros sombrios: leva Macário, mas carrega também várias revistas com o Simple Plan na capa. Um outro quer “qualquer coisa sobre esporte” e a jovem mãe quer saber como prevenir rachaduras nos seios. Outra moça quer um livro do “não- sei-o-que-Bandeira”, sem oferecer qualquer outra dica de título ou assunto, nem se é verso ou prosa. Ofereci Manuel Bandeira, pois a moça estava bem crescidinha.

Na semana seguinte, veio a mãe reclamar do livro: queria Pedro Bandeira – “aquilo era livro que se emprestasse a uma moça?” Vida de bibliotecária de referência não é fácil: precisa de muito jogo de cintura, cultura geral, paciência, simpatia e, se possível, uma bolinha de cristal. Mas as alegrias superam os males.

Trabalhei no Carro-Biblioteca durante somente um décimo de sua trajetória. Em toda a sua história foram vários motoristas, bibliotecárias, funcionários e estagiários. Centenas de milhares de empréstimos foram realizados, livros foram consumidos de tantos leitores virarem suas páginas, alisarem sua capa, os abraçarem contra o peito ou simplesmente os jogarem na mochila para “fazer trabalho”. Quilômetros de viagens do ônibus, outros anos-luz nas viagens de leitura que cada um dos leitores fez e faz.

Hoje o país tem um Plano Nacional do Livro e da Leitura (PNLL) que, embora esteja longe do ideal, nos propõe novamente o mesmo desafio lançado pelo INL, em 1937: formar um país de leitores, permitir que as pessoas saibam, possam e queiram ler. O Carro-Biblioteca continua levando livros, revistas, gibis e jornais ou, como diz seu slogan: “conhecimento, informação, imaginação”. Mais e mais comunidades gostariam de contar com os serviços de uma biblioteca, mesmo que seja volante e semanal.

Quando você avistar um bonito ônibus branco com aplicações em azul e amarelo saindo ou entrando no campus, já sabe do que se trata. Quando você cansar de ler aquele livro especial e perfeito que tem em casa, doe para uma biblioteca pública. Outros experimentarão aquela felicidade clandestina da qual nos falou Clarice Lispector. E se você tiver um belo Ulisses em casa, doe para o Carro-Biblioteca, que tem gente querendo muito.

* Bibliotecária do Carro-Biblioteca e mestranda em Ciência da informação na UFMG

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