Busca no site da UFMG

Nº 1612 - Ano 34
02.06.2008

Concubinato e mestiçagem no Rio das Velhas

Análise de devassas eclesiásticas revela complexidade das relações extraconjugais no século 18

Itamar Rigueira Jr.

 

A Comarca do Rio das Velhas, que tinha Sabará como sede, era a mais populosa – quase 100 mil habitantes em 1776 – e uma das mais importantes da Capitania das Minas Gerais no século 18. Centro de extração de ouro, a região era responsável também por parte do abastecimento no caminho para os sertões, que ligava Minas à Bahia seguindo o rio São Francisco. Ali, portugueses, africanos e índios – e seus descendentes – viviam relações afetivo-sexuais que eram condenadas pela Igreja e hoje ajudam a entender fenômenos como a miscigenação e rever conceitos sobre o papel da mulher de origem africana sobre seu próprio destino.

Paulo Cerqueira
Rangel
Rangel Cerceau: modalidades de concubinato

As formas de concubinato são definidas a partir de pesquisa do historiador Rangel Cerceau Netto defendida há dois anos como dissertação no Programa de Pós-Graduação em História da Fafich e recém-publicada em livro pela editora Annablume, com o título Um em casa de outro – Concubinato, família e mestiçagem na Comarca do Rio das Velhas (1720–1780). Parte desse trabalho será apresentada em agosto no tradicional Seminário sobre a Economia Mineira, realizado em Diamantina e promovido pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da Face.

Em suas visitas aos arquivos, Rangel Cerceau Netto debruçou-se sobre as devassas eclesiásticas, processos conduzidos pela Igreja, que na época era parceira do Estado no controle de questões sociais. “Um dos objetivos dessa associação – o chamado padroado – em sua cruzada pela moralização dos costumes era fazer prevalecer a idéia do casamento monogâmico. Por isso, as devassas revelam tanto sobre relações consideradas clandestinas, e o concubinato em suas diversas formas sobressaiu em minhas pesquisas”, explica Rangel Netto, que se serviu também de testamentos e cartas régias. Ele mostra que o costume da concubinagem se dava, na maioria das vezes, entre indivíduos de classes sociais diferentes, quase sempre homens livres brancos envolvidos com pretas e crioulas/mestiças, forras ou escravas.

Modalidades

O pesquisador descobriu implícita nas devassas uma divisão do concubinato em modalidades. Homens e mulheres sem impedimentos praticavam o concubinato simples, que se desdobrava no tipo casual (fornicação ou prostituição, segundo os processos), naquele em que havia compromisso maior, embora o casal vivesse em casas separadas, e no chamado “de portas adentro”, quando o casal dividia a casa sem a união formal. Outra forma de concubinato foi a adulterina, que podia ser eventual ou caracterizada pela formação de uma segunda família. O modo incestuoso também se explica pelo nome, e implicava consangüinidade ou afinidade.

O concubinato na região de Sabará foi também dos tipos clerical (envolvendo padres, freiras e noviços), poligâmico, duplo, quando se misturavam as modalidades, e o que Rangel chama de concubinato com promessa de casamento. “Nesse caso, um homem não podia formalizar a união, por exemplo, porque era casado em Portugal ou em São Paulo, e a Inquisição poderia condená-lo pesadamente por bigamia”, explica o pesquisador.

A diversidade das culturas que se encontraram na região, segundo Rangel, ajudou a fertilizar o terreno para a prática do concubinato, assim como a característica matriarcal de certos povos africanos – as mulheres assumiam com facilidade filhos de homens diferentes. Outro aspecto chamou a atenção do historiador: as mulheres negras e mestiças seriam bem menos vítimas nas relações com o homem branco nos setecentos. “As descobertas relacionadas ao concubinato ajudam a mudar uma tendência marcante na historiografia tradicional, que vê essas relações interétnicas e interculturais pautadas pela violência. Os documentos revelam que as mulheres africanas e descendentes tinham suas próprias motivações para o envolvimento afetivo e sexual com os homens brancos. Isso lhes valia posições mais favoráveis na sociedade”, conclui Rangel Cerceau Netto.