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Nº 1615 - Ano 34
23.06.2008

opiniao

Meu reino por um canudo

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

O sociólogo Gilberto Freyre, autor do clássico Casa-grande & senzala, nos deixou várias lições a respeito das “normas” que regem o modus vivendi brasileiro. Muitos se lembram da sua famosa (e contestada) tese da democracia racial. Mas, analisando o conjunto da obra deste pensador, considero que há ensinamentos mais contundentes. Citaria, por exemplo, a importância que Freyre conferiu à publicidade, ao criar o termo “anunciologia” para estudá-la. Segundo ele, o conteúdo expresso nos anúncios de jornais do século 19 demonstra as estratégias simbólicas de manutenção da ordem escravocrata, sustentada pelo direito de propriedade. Em suas investigações, Freyre elevou a publicidade à categoria de documento histórico, mostrando que ela não fica nada a dever, enquanto testemunha de uma época, às fontes tradicionais de pesquisa, como livros, manuscritos e registros cartoriais.

Essa perspectiva de Freyre deve ser levada em consideração também nos dias de hoje, haja vista os altos investimentos realizados pelas organizações em publicidade. Tudo em nome da visibilidade e do lucro.

Para alcançar esses dois objetivos, nada melhor do que uma técnica de venda em escala de massa, baseada em artifícios de persuasão e estratégias de convencimento, que visa conquistar a atenção do consumidor e a sua ação de compra. O anunciante, por meio da publicidade, oferece uma isca apetitosa, cheia de atrativos. Essa “isca” é a marca, o produto, o serviço que, ao prometer saciar a fome do público-alvo, busca fisgá-lo mais pela emoção do que pela razão. A arte dessa “pescaria simbólica” consiste em seduzir o consumidor pelo encanto da melhor “isca”, ou seja, aquela que, dentre as várias concorrentes, promete a saída mais fácil para a resolução do problema do cliente. Tudo em nome do seu bem-estar e conforto. Felicidade é a palavra de ordem.

Mas há um sorriso amarelo por trás do “sorriso colgate”. E devemos escancará-lo para melhor diagnosticar o problema. Caminhando pelas ruas de Belo Horizonte, fui assaltado, em plena luz do dia, por um outdoor de instituição privada de ensino superior que estampava o seguinte slogan: “O mercado aprova os nossos alunos. Os alunos aprovam o nosso ensino”. Logo perguntei: e o professor (sequer ele é mencionado no anúncio)? Qual é o papel do educador nesse jogo?

A meu ver, o professor deve atuar no papel de "estraga-prazeres" desse sistema, que transformou a educação em um produto, em um negócio, passando de direito universal garantido pelo Estado a prestação de serviço gerenciada pelos interesses particulares dos donos das capitanias educacionais. Sistema este que transformou os alunos em clientes, o professor em “unidade de custo ambulante” e que faz do estudante uma extensão do mercado, e não o contrário. Sistema este que transformou os encontros pedagógicos em desencontros demagógicos e que inverteu um processo importante, ao promover em demasia a carreira profissional em detrimento do papel fundamental do estudante: o de pensador. Sistema este que enaltece a prática e desmerece a teoria, sendo que a prática é a filha, ora obediente, ora rebelde, da teoria. A prática aponta para a realização. Mas para que exista a realização, é preciso dar vazão à abstração que a gerou.

Nessas tenebrosas transações, o diploma deixou de ser a conseqüência de um processo singular de aprendizado. Passou a ser a causa de um investimento feito em busca de um retorno imediato, garantido e sem muito esforço, de preferência. De certificado de conhecimento, o diploma passou à categoria de comprovante de renda.

É muito perigoso e reducionista tratar o estudante como cliente. Reza a cartilha comercial que o cliente sempre tem razão. Acontece que na educação a conduta é outra: deve prevalecer o debate de idéias e de ações entre os agentes envolvidos no processo, não havendo, portanto, “o dono da verdade”.

Nesse curto-circuito da educação como negócio, as aulas vêm se transformando em espetáculo, no qual o professor deve se comportar como um showman, isto é, o “boa-praça” que recebe seus alunos com piadas e tapinhas nas costas. Enquanto isso, a turma ri à beça, sem saber na verdade quem é o verdadeiro palhaço desse circo. Ou fingindo não saber. “Eu finjo que ensino, você finge que aprende”, eis o pacto da mediocridade roubando a cena. Nesse caso, o professor deixa de ser um provocador por excelência para atuar apenas como um “facilitador”. O estudante, por seu turno, torna-se um receptor passivo da aprendizagem, em vez de ser co-responsável pelo conhecimento produzido e discutido em sala de aula. Nesse reino desencantado, vale mesmo tudo pelo tão cobiçado canudo. É o que oferta a instituição privada de ensino superior, anunciante daquele desastrado outdoor. Marcado por uma faceta excessivamente operacional, que deixa a base humanista em segundo plano, esse estilo de fazer ensino superior forma uma tropa de elite de cidadãos imperfeitos e consumidores mais-que-perfeitos.

* Jornalista. Mestre em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG. Professor do curso de Comunicação e Marketing da Faculdade Promove de Sete Lagoas/MG

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