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Nº 1616 - Ano 34
26.06.2008

opiniao

Sorria, você está sendo filmado

Paulo Campos*

Qual o limite a que nos permitimos avançar quando colocados em xeque por atos de violência? Em síntese, buscar os culpados e, em alguns casos, exigir sua punição. É o que demonstram, por exemplo, o “caso Isabela” e o “caso IGC”. Em ambos, busca-se o periférico (quem chamou? quem autorizou? quem matou?) enquanto o essencial é posto de lado. Ora, muito além disso, os dois “casos” nos permitem refletir e tirar outras lições. Ou, com perdão da palavra, pensar.

O que se presenciou, no caso da Universidade, não foi apenas inapetência administrativa de alguns dirigentes nem uma sucessão de erros. Aliás, diga-se de passagem, mesmo se fosse, por si só já seria gravíssimo e digno de sanção. Presenciou-se a própria materialização de uma sociedade autoritária, individualista e pseudo-democrática numa instituição que prega justamente o contrário. E o que mais surpreende não é a existência desses atributos citados. Porque em todos os grupos, indivíduos, sociedades ou nações eles podem ou não estar presentes. Surpreende é a força que esse discurso tem tido para atingir o cidadão comum nos atos mais prosaicos do dia-a-dia. E o que me assusta é a incapacidade das pessoas de se assustarem com isso.

Seja para tomar cerveja num boteco, seja para entrar num prédio público, estamos sujeitos ao controle das câmeras e dos crachás. E, na maior parte das vezes, nós próprios concordamos e apoiamos esse controle. Se feito em nome da segurança e da ordem, é natural. Mais que natural. É desejado e bem-vindo. A segurança e a ordem tornam-se assim as novas deusas da sociedade do século 21. Por elas, todo sacrifício será recompensando com a paz eterna. Nas empresas, ruas, salas de aulas, instituições e espaços públicos, todos estamos sujeitos a cumprir e a aceitar a hierarquia. E claro, sorrir, pois estamos sendo filmados. Protegidos. Mas protegidos de quê? Protegidos de quem?

Das portarias dos prédios às ruas da cidade, assistimos atônitos à falta de urbanidade das pessoas. Temos dificuldades para aderirmos a espaços de participação democrática, mas participamos ativamente do autismo social em que se transformou o trânsito das grandes metrópoles. E assim continuamos a seguir pela cidade e pelo campus da universidade, rapidamente e protegidos pela escaramuça individualizante e poluidora do automóvel, signo de poder e sucesso, não importando o que essas palavras carreguem escamoteadas em si. Assim como o transporte coletivo é relegado a segundo plano, os espaços coletivos e de troca também perdem cada vez mais importância. Mas não deixam de existir aqueles que velam por eles e por nossa segurança. Até dentro dos ônibus somos lembrados que, em nome dessa divindade moderna, estamos sendo espiados.

Na maior parte das vezes, nós próprios concordamos e apoiamos esse controle. Se feito em nome da segurança e da ordem, é natural

Outro dia, um atleta foi preso dentro de um estádio de futebol como se assassino fosse. Diante das imagens televisivas, houve algumas vozes na mídia que se declararam estarrecidas pelo fato de um conflito esportivo ser resolvido com algemas. Mas, para muitos outros da nossa jus-imprensa, diante das provas, indubitáveis, irrefutáveis, não houve outro veredito: culpado. Também pela mesma mídia, podemos ver no YouTube não só a prisão por desacato do estudante no já famoso “caso IGC”. Mas vários outros desacatos nos comentários produzidos por internautas, alguns possivelmente alunos de grandes e conceituadas universidades.

Os exemplos de cotidianização da cultura de violência e intolerância a que estamos submetidos são múltiplos e pipocam onde menos se espera. Com maior ou menor grau de crueldade. Da dona-de-casa ao pai de família que aplaudem não o gol, mas o atleta preso. Do assassino de criancinhas a dirigentes universitários, que não se preocupam mais só com a educação e a formação do cidadão de amanhã. Do morador de rua ao morador de condomínio. Um invisível, o outro, cego. E reforçando a velha máxima de que o pior cego é o que não quer enxergar. Cego, sim, mas capaz de enxergar muitas teses de doutorados e obter bolsas, financiamentos de pesquisas e leis de incentivo à cultura estudando as mazelas sociológicas dos condomínios de luxo ou da condição pós-moderna, e que lhe permitirá, assim, viver em condomínios.

No futebol, na mídia ou nas instituições, a hipocrisia e a indiferença são o combustível dos déspotas que tentam perpetuar a cultura da violência e o autoritarismo no nosso cotidiano. Para romper com esse ciclo, é preciso derrubar muros, sair das salas de aula, do escritório, desligar os alarmes e ousar olhar para o próximo como um ser humano, não como potencial agressor contra quem a todo custo devemos nos prevenir. O desafio é que o muro é de concreto e o alarme, rastreado por satélite.

Se não aprenderem a pensar crítica e complexamente, as universidades e suas comunidades acadêmicas correm o risco de serem tão injustas e autoritárias quanto a tecnologia da sociedade que as produz. E não solidárias e democráticas como pensam ser.

*Ex-aluno dos cursos de Psicologia e de e Filosofia da UFMG

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