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Nº 1616 - Ano 34
26.06.2008

resolucoes

Os homens e a utopia feminista

Glauciene Lara

 

O movimento feminista exerce papel central nas conquistas alcançadas pelas mulheres nas últimas décadas. “Mas há, ainda, uma série de espaços em que precisamos avançar, além de esforços para manter os direitos conquistados" . A advertência não é de uma líder feminista, mas de um homem, Jorge Lyra, coordenador do Instituto Papai, ONG com viés feminista sediada em Pernambuco e que trabalha com pais adolescentes.
Este mês, Lyra participou da mesa-redonda O feminismo no masculino no Brasil, que integrou três grandes eventos feministas organizados pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (Nepem) da UFMG.

Após sua exposição, Lyra, psicólogo formado pela Universidade Federal de Pernambuco, mestre pela PUC-SP e doutor pela Fundação Oswaldo Cruz, concedeu a seguinte entrevista ao BOLETIM, na qual qualifica o feminismo de “utopia” e diz que a participação de homens no movimento é um “indicativo de que essa utopia pode se concretizar”.

Foca Lisboa
Jorge
Jorge Lyra: feminismo no masculino

 

Como os homens se inserem no movimento feminista?

As mulheres feministas vêem os homens como contraponto, como opressores e dominadores. Não que isso tenha se modificado. Continuamos vivendo em uma sociedade machista, sexista, homofóbica, racista e desigual. Mas as provocações formuladas pelo movimento de mulheres fazem com que os homens comecem a se questionar sobre como pensar e atuar de forma diferente.

A discussão sobre trazer os homens para o debate do feminismo e repensar a condição masculina a partir do feminismo acontece porque o feminino não é atribuição direta e exclusiva do corpo das mulheres, como o masculino não é só do corpo dos homens. O feminismo ampliou-se de tal maneira que abarca mais do que as mulheres; é um projeto de sociedade, um modelo de relações. A participação dos homens seria o primeiro indicativo da possibilidade dessa utopia se concretizar.

Que projeto de sociedade é esse?

De relações democráticas, participativas, questionadoras, movido pelo princípio da escolha, da autonomia, da democracia, de relações igualitárias, fazendo uma discussão do que é natural ou naturalizado, para quebrar essa lógica. Os hormônios que correm no meu corpo não me fazem naturalmente agressivo e violento. Como os hormônios que correm no corpo da mulher não garantem que ela deseja ser mãe, que ela é dócil. Desde cedo, aprendemos que a guarda dos filhos não é coisa de homem. Mesmo em brincadeiras infantis, as meninas ganham boneca e os meninos, soldadinhos.

A violência é considerada típica do gênero masculino. Mas como uma explicação, seja filogenética, seja do ponto de vista dos hormônios, vai estabelecer que 97% da população prisional do Brasil seja masculina? Isso é mais atribuição cultural, construção social, do que algo específico do corpo biológico masculino ou feminino.

Como se articula o discurso do homem feminista?

Envolve a diversidade sexual, a possibilidade da escolha do desejo. Contestamos todas essas construções culturais, como a de que ser mãe é um destino praticamente inevitável atribuído às mulheres. Há mulheres que não desejam ser mães, mas sempre sofrem a pressão de terem que ser um dia. Aos homens é atribuído o lugar de provedor financeiro, de autoridade da família. Essa é uma ideologia machista incorporada por homens e mulheres.

Os homens encontram muita resistência para se inserirem no movimento feminista?

Não existe consenso. Há quem entende que os homens não deveriam estar inseridos nessa discussão, porque o feminismo é algo das mulheres, é uma discussão de política identitária e este é um espaço da luta feminista. Esse feminismo anti-homem ou antimasculino existe porque ainda vivemos em uma sociedade machista. Por outro lado, há espaços e pessoas que aceitam, entendem e trabalham com os homens.

Esse feminismo anti-homem não está cometendo o mesmo erro do machismo, ao promover a segregação?

Em algumas situações, conseguimos entender os motivos. No Fórum de Mulheres, por exemplo, os homens ligados ao movimento não vão se candidatar a coordenadores. Não estaremos na Conferência de Mulheres como delegados. Como homens feministas não queremos ocupar espaços de representação das mulheres. Queremos participar das discussões. Participei da Conferência Municipal de Mulheres de Recife e também da Nacional convidado por mulheres.

A participação do homem no movimento feminista é recente?

No movimento dos anos 60 e 70, havia, para alguns temas, coalizões de homens e mulheres que vinham do movimento de esquerda. A partir de 1968, começa a discussão do lugar da mulher na sociedade, da dominação sofrida. Os homens acusavam as mulheres de dividir a luta porque o debate de classe, do operariado, era hegemônico. Os companheiros eram democráticos, “pero no mucho”. O homem pode ser muito democrático no plano das relações sociais, mas quem fica com os filhos e faz a limpeza da casa é a mulher. Nos anos 2000, as mulheres ainda brigam com os homens por espaço nos partidos políticos, fechados à participação feminina. Há também uma série de movimentos que desmontam essas relações desiguais, como o anti-racismo.

A mulher branca, de classe média, escolarizada, está no espaço público porque a negra, que foi escrava durante 500 anos no Brasil, continua sendo a empregada doméstica e cuidando dos filhos da branca. As soluções acabam aparecendo apenas para quem tem possibilidades, maior rede de relações, conhecimento e recursos financeiros.