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Nº 1624 - Ano 34
08.09.2008

“Estará entre nós o terrível morbus?”

Visões da história e da ciência propiciadas pelo impacto da gripe espanhola em BH ganham livro inédito

Ana Maria Vieira

Foca Lisboa
Anny Silveira: história de epidemia revela aspectos da vida pública

Em 7 de outubro de 1918, um oficial do exército acompanhado de sua família desembarcava em Belo Horizonte, vindo do Rio. Eles não sabiam, mas não estavam sós: portavam o temido vírus Influenza, que, naquele ano, produzia a maior pandemia já relatada pela humanidade. O mal, conhecido como gripe espanhola, abateria, em poucos meses, pelo menos 30 milhões de pessoas em todos os continentes.

Na capital mineira, a população acompanhava os fatos com um estado de ânimo contraditório. Construída sob as normas sanitárias vigentes à época, Belo Horizonte – bradavam muitos – estaria imune à manifestação da epidemia em sua forma mais letal. “Devemos”, registrava em artigo o jornalista Gustavo Pena, “aguardar seu arremesso com a confiança tranqüila de quem, de posse de um enérgico cacete, espera a investida de um cão bravio.” Apesar disso, apenas três dias após a chegada do militar contaminado, a epidemia começaria a se espalhar pela decantada cidade salubre. “Influenza Espanhola? Estará entre nós o terrível morbus?”, alardeava o jornal A Nota, de 10 de outubro.

A pouco difundida história da gripe em Belo Horizonte pode ser agora melhor conhecida. Recém-lançado, o livro A Influenza Espanhola e a cidade planejada – Belo Horizonte, 1918, da editora Argvmentvm, reporta série de relatos colhidos de periódicos e memorialistas mineiros, além de rica bibliografia sobre a epidemia e o contexto da ciência, de modo inédito. “O objeto da saúde é um dos pontos a partir dos quais é possível observar os mais diversos aspectos da sociedade”, diz Anny Jackeline Torres Silveira, autora da obra, baseada em sua tese de doutorado, defendida em 2004 na Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora do Colégio Técnico da UFMG, ela apresenta, em texto fluente, a trajetória e as discussões feitas pela ciência na identificação do agente da epidemia, as contribuições brasileiras e mineiras nesse processo, o percurso da gripe no mundo e no país e a convivência de Belo Horizonte com a doença.
“O estudo dessas experiências pode auxiliar na percepção das estruturas administrativas, da agenda de políticas públicas e da capacidade de ingerência do Estado na sociedade; dos embates entre interesses coletivos e individuais; da organização da vida cotidiana (...) e das visões de mundo que buscam explicar e dar sentido à existência humana”, enumera Anny Jackeline.

Discurso da salubridade

A dramaturgia do contato e da história de crise reportada pela pesquisadora apresenta contornos especiais na jovem capital mineira. Conforme observa a professora, o discurso de salubridade no espaço urbano se instala na cidade desde antes de sua criação e torna-se uma das representações e dos ideais de progresso e civilização que moldavam a sociedade na virada do século 19 para o 20.

ência, advindos, no caso, da bacteriologia – que passava a explicar as doenças por meio da identificação de seus agentes causadores –, esses ideais serão confrontados de modo drástico com a pandemia. Na capital mineira, vê-se logo que a salubridade não é para todos. “Durante toda a história da cidade, o avanço da urbanização superou o movimento de oferta dos serviços sanitários, concentrados em determinadas áreas da cidade”, relata a historiadora.

Apesar disso, a visão da presença da gripe na cidade é amenizada pelo mesmo discurso: nela, o problema teria sido limitado graças à sua boa estrutura. O aspecto é tão marcante que não se observa a culpabilização dos agentes governamentais mineiros, comum em outros lugares. A questão, no entanto, deve ser relativizada devido ao perfil dos jornais que lhe serviram de fonte: Minas Gerais (oficial) e Diário de Minas (ligado ao Partido Republicano). Mas a indiferença de contemporâneos em revelar a memória dos antigos familiares também sugere resquícios de uma coesão que persiste ao longo dos anos. “Ao que tudo indica é uma lembrança que as pessoas gostariam de eliminar”, reflete Anny Jackeline Silveira.