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Nº 1626 - Ano 34
22.09.2008

Lápis sem rumo

Tese premiada analisa narrativas sobre conflitos e identidade na literatura e no cinema da
Europa Centro-Oriental

Itamar Rigueira Jr.

Rita da Glória
mapa


O menino do interior, apaixonado por selos e mapas, se entregava com cuidado respeitoso à tarefa de passar em grafite para o papel de seda os contornos de países e continentes. Nesse ritual, ele reverenciava a própria certeza sobre a ordem das coisas. Pois o menino cresceu. E testemunhou a distância, em 1989, a queda do Muro de Berlim e suas conseqüências: as Alemanhas voltaram a ser uma, a União Soviética desapareceu, a Iugoslávia se desmantelou.

Da desilusão com a noção concreta e precisa de fronteira e da atenção despertada pelos conflitos nos Bálcãs – que se seguiram à queda do Muro –, surgiu o interesse de Leonardo Francisco Soares pela forma como escritores e cineastas da região contaram uma história de guerras que, de resto, está longe de ser recente – vide os episódios deflagradores das grandes guerras mundiais e as lutas pela libertação dos otomanos no século 19.

O resultado desse mergulho está na tese de doutorado Leituras da outra Europa: guerras e memórias na literatura e no cinema da Europa Centro-Oriental. Defendida em 2006 na Fale, sob orientação da professora Graciela Ravetti de Gómez, a tese acaba de ser escolhida a melhor do Brasil no período 2002-2006, categoria Literatura, pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística (Anpoll).

Nos anos 90, lembra o autor, muitas obras chegaram ao Brasil, avalizadas, no caso de alguns filmes, por prêmios nos festivais de Cannes e Veneza. “Era possível perceber outro tratamento na representação dos conflitos e catástrofes daquela região. A representação da guerra nessas obras foge da tradicional, rompendo, por exemplo, com as noções convencionais de tempo, que é incerto e cheio de surpresas, assim como a História que se revelou nessa parte da Europa”, explica Leonardo Soares. Ele acha que evitar o estereótipo ajuda os artistas a se aproximarem dos eventos. “O desejo não é só o de contar, mas de atingir a experiência”, diz.

“Outra Europa”

Leonardo concentrou seu estudo em livros do albanês Ismail Kadaré, do sérvio Danilo Kiš e do húngaro István Örkény; e em filmes do macedônio Milcho Manchevski, do bósnio Emir Kusturica e do grego Theo Angelopoulos. Interessado em refletir sobre processos de construção de identidades desencadeados por dispositivos específicos à literatura e ao cinema, Leonardo Soares explica que procurou enfatizar a articulação das diferentes configurações de guerra com concepções de nação, identidade, história e memória. “Parti da convicção de que essas artes podem formular respostas próprias e não apenas reagir de maneira secundária à experiência humana”, diz o pesquisador.

A cobertura intensiva dos conflitos nos Bálcãs nos anos 1990, de acordo com Leonardo Soares, fez reviver clichês que moldaram uma espécie de representação média da Europa Centro-Oriental, simbolizada pela idéia de que aqueles povos seriam fadados à violência e ao terror das guerras. “A região foi desenhada como um cenário mítico de horrores étnicos e intolerância, herança de um patrimônio bárbaro, oriental, ortodoxo, muçulmano e comunista”, enumera o autor. A prevalência de estereótipos que marca a visão ocidental sobre a região está relacionada à eterna questão da diferença entre aqueles territórios e a chamada Velha Europa – os balcânicos estariam na margem do continente e, por isso, Leonardo usa a expressão “outra Europa” no título do trabalho.

O rigor com a reprodução de fronteiras dos tempos de menino não ficou como herança para o pesquisador. Leonardo Soares extrapolou limites entre as formas de arte e entre as disciplinas. “A exploração de dados e conceitos ligados à Geografia e à História por uma tese de Literatura surpreendeu algumas pessoas de fora, mas dentro da Fale, onde essa atitude é comum, me senti muito estimulado a adotar esse enfoque multidisciplinar”, conta o autor premiado, que se inspirou em pesquisas dos professores Luís Alberto Brandão, da Fale (relação entre nação e ficção), e Cássio Hissa, do IGC (mobilidade das fronteiras).