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Nº 1631 - Ano 35
27.10.2008

Em português arcaico, com caracteres hebraicos

Um dos três trabalhos vitoriosos na Grande Prêmio UFMG de Teses baseia-se na transcrição de guia astrológico do início do século 15

Itamar Rigueira Jr.

Um guia astrológico escrito no início do século 15 por um judeu português, em português arcaico mas com caracteres hebraicos, foi objeto do estudo que resultou na tese de doutorado vencedora do Grande Prêmio de Teses 2007 da UFMG (áreas de Ciências Humanas, Ciências Sociais Aplicadas e Letras, Lingüística e Artes). Aléxia Teles Duchowny transcreveu os primeiros 186 dos 416 fólios (832 páginas) que compõem o De magia, propriedade da Bodleian Library, da Universidade de Oxford, na Inglaterra.

Página do guia astrológico: transcrição é fruto de trabalho minuciosoDepois da graduação em Letras (com habilitação em francês) na UFMG, entremeada por uma temporada de três anos na Sorbonne, em Paris, e do mestrado em Lingüística, também na UFMG, Aléxia tomou conhecimento do De magia pelo professor César Nardelli Cambraia, que o encontrou num catálogo de livros medievais. A pesquisadora leu dois artigos sobre o guia, comprou cópias digitalizadas e propôs o tema ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos da Fale, onde passou a receber orientação da professora Maria Antonieta Cohen.

A maior peculiaridade do texto, segundo Aléxia Duchowny, é o fato de ele ser uma aljamia, isto é, escrito em uma idioma com os caracteres de outro. Embora haja crédito para João Gil de Burgos, essa referência não significa que ele seja o autor – pode ter sido o compilador ou o organizador da obra, por exemplo. Aléxia ressalta, entretanto, que se pode inferir a autoria de um homem português e judeu, por algumas razões: as mulheres eram analfabetas, em sua grande maioria, naquela época, e o texto está escrito em português com caracteres hebraicos, usados apenas pelos judeus.

Quando ao percurso da peça até chegar a Oxford, é certo que o matemático inglês John Dee a comprou na Bélgica, no século 16. “Não se sabe exatamente como o livro chegou à Bélgica, mas em 1497 o rei Manuel decretou que os judeus não poderiam possuir livros judaicos, que deveriam ser depositados nas sinagogas. Os exilados, no entanto, levavam seus livros para onde quer que fossem”, explica Aléxia. John Dee vendeu aos poucos sua magnífica biblioteca para sanar problemas financeiros, e o De magia chegou às mãos do arcebispo William Laud, um dos grandes responsáveis pela montagem do acervo da Bodleian Library.

Palavra por Palavra

Depois de se criar um corpo de normas para a transcrição dos caracteres hebraicos para os latinos, Aléxia deu início à transcrição do texto, que tomou três dos quatro anos do doutorado. Sem a Internet e as ferramentas atuais da informática, ela ressalta, esse trabalho demoraria muito mais tempo. “Foi preciso reconstruir palavra por palavra, pois muitas vogais não se encontram no texto, o que é típico da língua escrita hebraica”, explica a pesquisadora.

A angústia que marcou a produção da tese – “é um trabalho muito solitário, só a gente sabe o que está sendo feito, ninguém entende ou se interessa” – teve momentos de compensação. Aléxia viveu forte emoção durante cinco dias na seção de manuscritos orientais da Bodleian Library, em Oxford. O livro, que fica guardado numa caixa-forte do subsolo da biblioteca, esperava por ela todas as manhãs, numa caixa cinza, embaixo do balcão da seção. “Foi gratificante encontrar o original depois de tanto tempo de uma relação mediada pela tela do computador. Além disso, tive o prazer de conhecer as fascinantes ‘entranhas’ da Bodleian Library”, conta a professora, recém-admitida em concurso pela Universidade Federal da Paraíba.

Aléxia Duchowny avalia que o texto do De magia pode interessar a diversas áreas – medicina, antropologia, ciências sociais, lingüística, história, filologia e geografia. “O guia abre janelas inusitadas para entender melhor a história da língua portuguesa, do português arcaico, de Portugal e dos judeus”, afirma.