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Nº 1685 - Ano 36
8.3.2010

opiniao

Caô center

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Persistência é a teimosia inteligente. Teimosia é a persistência burra. Este é o caso dos operadores de telemarketing, na forma de abordar o público, têm sido teimosos, achando que estão sendo persistentes. De forma invasora, eles sequestram a nossa atenção e atormentam o nosso sossego, passando a mão no telefone para nos oferecer negócios da China e contratos em alemão. O importante não é esclarecer a clientela, mas sim confundi-la. Representante da sociedade da informação em tempos de mundialização mercadológica, o call center se transformou em um grande caô center. A sociedade da desinformação agradece pela falta de ligação. Negócio fechado à base de papo furado. O clima de desconfiança por parte do público cresce na relação direta da queda de confiabilidade dos serviços de telemarketing. Diante de tal fiasco, muito mais do que educar para o mercado, precisamos educar o mercado que anda muito mal educado.

No beco escuro, explode a incompetência. Os investimentos na qualidade da prestação de serviços de atendimento ao público ainda são tratados como se fossem apenas “custos” por parte daqueles que sofrem de economiopia. Neste desalinho administrativo, não interessa compartilhar a riqueza. Para o bem de poucos e felicidade particular de quem sempre lucra, socializar o prejuízo é considerado a solução tanto para remediar a crise quanto para evitá-la, o que sustenta a razão cínica segundo a qual somos solidários somente no câncer. Reza a cartilha do poderoso chefão (leia-se: fracassado líder) que a capacitação dos colaboradores funciona apenas como adestramento dos empregados para vestirem a camisa da empresa e não a do respeitável público. Como “infiel” da balança, o fantasma do desemprego atormenta a rotina profissional, alimentando a prática de guerrilha conhecida como “metanoia”. Interessa aos operadores de telemarketing somente alcançar patamares elevados de venda, mesmo que, no bonde do cifrão, os números fiquem na primeira classe e as pessoas, na terceira.

Por meio de um script robótico, marcado por uma linguagem cifrada, cujos estímulos só podem ser respondidos com a adesão inquestionável do receptor à marca, ao produto e ao serviço anunciados naquele (mono)diálogo, o informante deixa de ser um educador do consumo consciente para se tornar um profissional do lero-lero. Exemplificando tal situação, Vanessa Barbara, no texto “Os sem-celular” (Piauí, fevereiro de 2010), apresenta ironicamente a caótica relação entre os usuários de celular e os complicados planos de telefonia móvel: “a operadora X fornece 23% de desconto na franquia mensal para quem fala 280 minutos em ligações locais, envia 100 torpedos por mês, baixa três megabytes de dados e tem uma tia chamada Lourdes. Já a operadora Y cobra só depois do primeiro minuto, permite roaming gratuito, exige fidelidade de 18 meses e libera sem custos o envio de fotomensagens. É preciso ter doutorado em estatística para computar esses dados. Pois bem, o detentor de um celular considera todos esses fatores simultaneamente e, no final, escolhe o pior plano, com os piores atendentes, e um sinal fanho que só melhora nas cercanias do Pico do Jaraguá”.

Direto da usina da enganação, o orador canastrão comete um crime de lesa-consciência ao colaborar com um dos maiores enganos da história do mercado: considerar preço e valor como termos idênticos. O preço é calculável, mas o valor é incalculável. Conferir valor é algo que marca a intervenção dos seres humanos no mundo como criadores de cultura. A transformação que se opera por meio do trabalho se dá no aspecto material e no plano simbólico de atribuição de significados. Os objetos e bens ganham valor pelo que representam para nós. O marketing embola o meio de campo, ensinando-nos que o que não tem preço não tem valor.

Tal confusão conceitual foi alvo de inteligentes críticas endereçadas ao nosso apego imprudente ao vil metal. Raul Seixas, no álbum Krig-Ha, Bandolo! (1973), chamou o dinheiro de “ouro de tolo”. Paulinho da Viola, por sua vez, compôs Pecado capital (1975), que serviu como um grande alerta direcionado ao individualismo e à ganância dos homens, decorrentes da acumulação monetária desenfreada: “Quando o jeito é se virar/Cada um trata de si/Irmão desconhece irmão/E aí dinheiro na mão é vendaval/Dinheiro na mão é solução/E solidão”. Trazendo tal constatação para o universo aqui analisado, chegamos à triste conclusão de que, na relação com o call center, o público costuma ficar na solidão à espera de solução. O cidadão é acolhido pelo operador de telemarketing, quando o negócio promete mundos e fundos ou está a mil maravilhas. Porém, se o negócio estiver uma porcaria, o consumidor é rejeitado ou levado no “banho-maria” pelo autor da oferta.

O constante ataque dos operadores de telemarketing sofrido por nós se assemelha à ameaça vivida por uma das personagens do filme Os dobermans atacam (1973). Um cidadão resolve comprar uma boneca para a filha numa grande loja. Lá, sofre assalto e desmaia no banheiro. Fica, então, preso na loja, após o fechamento. O estabelecimento é vigiado por dobermans raivosos. Diante do desespero para fugir deles, o homem faz uso de todos os artifícios para sobreviver, incluindo o emprego de aparelhos, brinquedos infantis e demais recursos da própria loja. Alegoricamente, existe na trama uma (a)versão metafórica da forma pela qual, no mundo mercantil, são feitas as vendas. O sistema econômico é guardado por dobermans simbólicos. Entre eles, estão os operadores de telemarketing que, a partir de um modelo de venda marcado pela ferocidade e pela voracidade caninas, colocam os dentes à mostra para “morder” o consumidor.

* Jornalista, formado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Doutorando e mestre em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG

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