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Nº 1707 - Ano 36
23.8.2010

opiniao

O Projeto manuelzão e a opção pelo PEIXE

Apolo Heringer Lisboa*

O que tem a ver a mobilização pela “volta do peixe” com saúde humana? Essa história começou com dúvidas surgidas entre professores da disciplina de graduação Internato em Saúde Coletiva, sobre sua prática docente e sobre o objeto dessa disciplina médica.

A medicina trabalha com doenças: pesquisa, diagnóstico, prevenção médica, tratamento clínico-cirúrgico e outros. Já saúde não é uma questão basicamente médica e sim de qualidade de vida; tem mais a ver com macroeconomia, infraestrutura, política e cultura. Questiona-se porque a nossa disciplina é de Saúde Coletiva, não de clínica. Para o Projeto Manuelzão, somente uma intervenção sistêmica com redirecionamento da política e da economia, nos diversos níveis, proverá nossa sociedade de condições ecossistêmicas de saúde coletiva. Essa não é a lógica da indústria da doença. Daí nosso caráter ser necessariamente transdisciplinar/setorial/institucional, abrangendo o conjunto da UFMG e indo além. Não tem sentido ser limitado ao caráter clínico ainda que da prevenção médica.

Imagine um rio altamente poluído onde os biólogos diagnosticam diversas doenças nos peixes, teratogenias, cegueiras, diminuição da estatura e mortandades. Optar pelo tratamento individual dos peixes seria visto como um absurdo diante do mal maior que é a poluição. A despoluição do rio salvaria as espécies e garantiria saúde aos indivíduos? Esta deveria ser a questão. Ou seja, restabelecendo-se a qualidade do ecossistema aquático agimos com a lógica da saúde coletiva.

E o nosso rio? A opção na sociedade humana deveria ser dupla: tratar os indivíduos, mas priorizando o investimento na qualificação do ecossistema humano – habitats, nichos, ecossistemas, biomas. São suas cidades, universidades, moradias, escolas, sistemas de transporte, macropolítica econômica e mentalidade civilizatória. Esta visão força-nos a rever conceitos em política e em macroeconomia, o SUS e as bases filosóficas de nosso pensamento social.

A opção pelo peixe é uma estratégia adotada pela nossa percepção da importância metodológica do território de bacia hidrográfica e das águas. O peixe é um indicador de saúde coletiva ambiental da bacia, incluindo a espécie Homo sapiens. Ele está sendo transformado em eixo de mobilização. Está relacionado com o princípio metodológico segundo o qual “o espelho d`água mostra a nossa cara”. Com essa estratégia monitoramos as transformações ambientais e civilizatórias e avaliamos a gestão pública.

A bacia hidrográfica e seus ecossistemas integrados têm base geológica e uma linguagem compatível de caráter universal. Portanto, supera as fronteiras geográficas e culturais politicamente impostas aos seres vivos. Permite a globalização inteligente de uma humanidade solidária que pensa e age mundial e localmente.

Em 2003, durante a expedição que desceu o Velhas até o São Francisco, propusemos a Meta 2010: Navegar, Pescar e Nadar no seu trecho mais poluído, na passagem do rio pela Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). O então governador de Minas Aécio Neves a assumiu em março de 2004, por sugestão nossa. E posteriormente a transformou em Programa Estruturador do estado. Foram feitos investimentos políticos, administrativos e financeiros tanto pelo governo, quanto pelo Projeto Manuelzão/UFMG, diversas prefeituras e algumas empresas. Mas o ator mais eloquente foi a sociedade civil, ao conseguir que o estado encampasse sua proposta.

Fazendo agora um balanço da Meta 2010, concluímos que ela teve 60% de sucesso. Nadamos com segurança em Santo Hipólito, na região de Curvelo, no médio curso. Nessa região comemora-se o milagre da multiplicação dos peixes e da ressurreição do rio. Dados do biomonitoramento do Nuvelhas/Projeto Manuelzão, que vem sendo realizado há mais de dez anos, comprovam que peixes antes ausentes estão chegando à Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). No geral, o rio melhorou muito. Mas ainda não conseguimos a vitória de nadar com segurança no trecho que banha a RMBH. Por isso, para não deixar o vazio tomar conta, e fazer com os parceiros as reformulações necessárias na gestão, lançamos a Meta 2014, para finalmente podermos nadar na RMBH e ter aí um rio cheio de peixes da bacia da São Francisco. Algumas diretrizes para esse novo momento estão previstas em documento assinado no dia 14 de agosto, às margens do rio das Velhas, pelo governador Antonio Anastasia, por Aécio Neves, por diversos prefeitos – entre os quais o de Belo Horizonte, Márcio Lacerda – os coordenadores do Projeto Manuelzão, secretários de Estado, deputados, Núcleos do Projeto Manuelzão e pessoas presentes ao evento.

A Meta 2014 exclui de forma peremptória a construção de barragens na calha do rio das Velhas e na bacia do rio Cipó. No caso de Santo Hipólito, uma barragem teria consequência devastadora sobre os ecossistemas da bacia do Cipó/Paraúna, Pardo e médio Velhas, além da inundação de povoados, de terras férteis da região e isolamento de pessoas. Tal barragem nunca foi uma reivindicação regional. A região tem outras prioridades.

O objetivo maior da Meta 2014 é a conquista de uma sociedade com nova visão de mundo, civilizatoriamente superior, ecossistemicamente adequada às necessidades de todas as espécies, verdadeiramente democrática e justa, abolindo fronteiras e preconceitos. As águas e o peixe estão cumprindo o papel estratégico de guias e inspiradores de uma transformação de mentalidade.

*Professor da Faculdade de Medicina e coordenador do Projeto Manuelzão

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