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Nº 1750 - Ano 37
26.9.2011

opiniao

CÓDIGO FLORESTAL: o que a CIÊNCIA tem a dizer*

José Goldemberg**

Há mais de um ano que as discussões sobre a reforma do Código Florestal dominam os trabalhos do Congresso Nacional e ocupam lugar considerável nos meios de comunicação. O substitutivo do deputado Aldo Rebelo polarizou os debates e acabou levando o próprio governo a uma séria derrota, quando foi aprovado por grande maioria da Câmara dos Deputados.

Praticamente ignorado em toda a discussão foi um interessante relatório preparado por grupo de trabalho da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e da Academia Brasileira de Ciências (ABC), que reúne dados científicos básicos sobre o que se sabe a respeito das florestas brasileiras e as razões por que elas precisam ser protegidas.

O Código Florestal envolve grande número de interesses e visões conflitantes de ambientalistas, ruralistas, grandes proprietários, assentados rurais, populações indígenas e outros grupos, sendo função legítima do Congresso estabelecer as regras que conciliem esses interesses em maior ou menor grau. Os interesses envolvidos vão dos motivados por considerações econômicas pragmáticas aos mais gerais, como proteção da biodiversidade e até da paisagem. Contudo, não se pode ignorar o que a ciência tem a dizer, o que torna o Código Florestal diferente de outros códigos, como o Civil ou o Tributário, que definem apenas regras de comportamento social ou econômico.

No caso de florestas, decisões equivocadas podem implicar sua destruição, com consequências irreversíveis que afetarão não só a atual geração, mas também as futuras. Neste caso é essencial adotar o Princípio da Precaução, incorporado à Convenção do Clima adotada na Conferência do Rio, em 1992, e ratificada pelo Congresso Nacional. O que esse princípio nos diz é que, “quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”. Em outras palavras, melhor prevenir do que remediar.

Isso não foi feito no passado e levou a Mata Atlântica, que se estendia ao longo de 17 estados – do Piauí ao Rio Grande do Sul –, praticamente à extinção. Restaram apenas 11,4% da área original. E muitas das regiões desmatadas deixaram de ser utilizadas, como é o caso de grandes extensões usadas no cultivo de cafezais no passado e que hoje jazem abandonadas no Vale do Paraíba. O mesmo ocorre em grande escala no Pará, onde metade da cobertura florestal já foi eliminada.

Essa é precisamente a situação que enfrentamos agora em relação à Floresta Amazônica. Existem ameaças sérias à preservação dessa floresta e cabem medidas para prevenir que se materializem, uma vez que sua recuperação – estimada em R$ 12 mil por hectare – supera em muito o custo do desmatamento.

Exemplo é dado pela maneira como o substitutivo Aldo Rebelo trata a faixa de proteção ao longo dos cursos d´água (matas ciliares) com menos de cinco metros de largura. No substitutivo, ela é reduzida para 15 metros, medida a partir do leito menor; no Código Florestal vigente, a faixa de proteção é de 30 metros a partir do nível mais alto.

O que a ciência nos diz é que cursos d’água de menos de cinco metros de largura compõem mais de 50% da rede de drenagem do país, e a redação proposta resulta numa redução bruta de 31% da área protegida pelo Código Florestal vigente. Essa modificação conflita frontalmente com dados discutidos no documento da SBPC/ABC: as matas na faixa de proteção reduzem a concentração de poluentes químicos nos rios causada pelo vazamento de fertilizantes das áreas agrícolas próximas de suas margens. Mais ainda, as matas ciliares reduzem a erosão e a perda de solo de forma significativa. Não é apenas a biodiversidade existente nas matas ciliares e a sua beleza que precisam ser protegidas, mas o próprio curso d’água.

Vários outros casos são apresentados no documento da SBPC/ABC, justificando, por exemplo, a importância das áreas de proteção permanente. Mesmo quando compensadas fora da propriedade agrícola –,o que está previsto no substitutivo –, elas devem necessariamente ocupar a mesma região, com características adequadas (o mesmo bioma), e não em regiões distantes ou em outros estados. Caso contrário, é inútil protegê-las, porque a vida silvestre não sobreviverá. Além disso, as áreas protegidas precisam ser interligadas por corredores ecológicos, dos quais as matas ciliares são em geral os mais adequados.

A Amazônia é palco de uma expansão rápida da fronteira agrícola, como ocorreu também em outros países. O caso mais conhecido é o dos Estados Unidos há cerca de 150 anos, mas ela não foi predatória, porque a propriedade da terra foi sempre bem definida e respeitada. Segundo alguns analistas, esse é o calcanhar de aquiles de qualquer política fundiária para a Amazônia. Sem definir claramente a posse da terra e regularizá-la, a “grilagem” continuará a avançar.

Como se sabe, a ocupação das terras (frequentemente públicas e de custo zero) passa pelas seguintes etapas: extração da madeira de lei, instalação da pecuária e, em seguida, uma agropecuária mais moderna, principalmente soja, ou, em muitos casos, o abandono da terra degradada. Essa é uma combinação imbatível, uma vez que o risco econômico é muito baixo. Ela gera lucros rapidamente e o consequente avanço da fronteira agrícola, levando ao abandono das áreas desmatadas, como já ocorreu com a metade do estado do Pará.

É isso que precisamos evitar. Mas o substitutivo do atual Código Florestal aprovado na Câmara vai na direção contrária e não deveria ser votado no Senado antes de os cientistas da SBPC/ABC serem ouvidos.

*Publicado no jornal O Estado de São Paulo, de 19 de setembro
**Professor da Universidade de São Paulo (USP). Foi presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e ministro do Meio Ambiente

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