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Nº 1752 - Ano 37
10.10.2011

REVOLUCIONÁRIOS ou SUBMISSOS?

Dissertação da História resgata imaginário construído pelo PCB sobre camponeses e latifundiários

Flávio de Almeida

À medida que ampliavam seu patrimônio fundiário, os proprietários de terra ficavam gordos e corpulentos. Pior: a riqueza acumulada não deformava apenas o físico, mas afetava principalmente o seu caráter, transformando-os em homens preguiçosos e exploradores do trabalho alheio. Em contrapartida, os camponeses eram figuras esguias, fortes e resistentes, apesar do sofrimento a que eram submetidos.

Cuidadosamente elaborado pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) durante cerca de 40 anos – com mais intensidade entre as décadas de 1940 e 1960 –, esse contraste de representações do ambiente rural acaba de ser resgatado pela historiadora Paula Elise Ferreira Soares em dissertação defendida no mês passado no Programa de Pós-graduação em História da Fafich.

“Meu trabalho busca recuperar o imaginário construído pelo PCB sobre o meio rural, tentando evidenciar algumas das representações acerca dos camponeses e daqueles que eram entendidos como seus principais opositores, os latifundiários”, explica a autora da dissertação.

Além de sua militância disciplinada, o PCB lançou mão de um time de estrelas da cultura nacional para desenvolver um ideário capaz de mobilizar o campesinato brasileiro em favor da causa da revolução socialista: de intelectuais marxistas como Nelson Werneck Sodré a artistas plásticos do quilate de Cândido Portinari, passando por escritores como Jorge Amado e Graciliano Ramos.

E foi a partir da análise das obras desses autores que Paula Soares conduziu o seu estudo, dividido em quatro partes. A primeira é dedicada ao esforço teórico empreendido por nomes como Alberto Passos Guimarães, Nelson Werneck Sodré e Otávio Brandão. “Eles defendiam a tese de que o Brasil passara por uma experiência feudal no campo”, comenta Paula.

No segundo capítulo, a historiadora se debruça sobre o esforço do PCB em converter as teses dos intelectuais em diretrizes de fácil assimilação. “E aí eles diferenciam campesinato de latifundiário, descrevem a trajetória do camponês, tentando enquadrá-lo como revolucionário histórico e remetendo-o a movimentos como a Coluna Prestes e as guerras de Canudos e do Contestado”, diz.

Visão oscilante

Paula Soares também analisou a obra literária de escritores comunistas, elenco que abrangia dos desconhecidos Permínio Asfora (Piauí) e Dalcídio Jurandir (Pará) aos consagrados Jorge Amado, Graciliano Ramos e Oswald de Andrade. Segundo ela, a visão do campesinato entre os literatos oscilava. “Ora o camponês era descrito como um homem revoltado com suas condições de vida, configurando um revolucionário em potencial, ora como um homem ingênuo, submisso e alienado.”

No entanto, os estilos literários demarcavam diferenças de abordagem entre os autores. Enquanto Jorge Amado era mais maniqueísta e deixava explícita sua posição ideológica nas obras, Graciliano Ramos tinha um estilo mais introspectivo, o que diluía sua orientação política. Mesmo assim, ao se deter sobre São Bernardo, uma das principais obras do escritor alagoano, Paula Soares identificou nela uma representação do latifundiário que se tornaria recorrente no ideário comunista. “Ele faz uma espécie de análise da formação do latifundiário, um sujeito que nasce pobre e vai enriquecendo por vias truncadas”, comenta a pesquisadora.

No capítulo dedicado às artes plásticas, a análise recai, sobretudo, sobre o trabalho de Cândido Portinari, cuja estética, segundo Paula Soares, foi plenamente absorvida pelos comunistas, que desenvolveram uma leitura enviesada das conhecidas deformações que o artista imprimia aos pés e mãos de seus personagens. “Eram interpretadas pelo partido como uma tentativa de representar a força e a capacidade de resistência e de luta do camponês”, analisa a pesquisadora.

Contradições no olhar

Apesar dos esforços para transformá-lo em uma classe revolucionária, os comunistas nutriam suas desconfianças em relação ao campesinato. Um descrédito sustentado, inclusive, por Karl Marx, “que já dizia que o campesinato estava fadado a desaparecer, era atrasado e se esforçava apenas para preservar seu modo de produção”, lembra Paula Soares.

O ceticismo também contaminou o PCB, fundado em 1922 e que só começou a olhar para o campo por volta dos anos 1940. Ainda assim de forma contraditória. “Os comunistas viam os camponeses como símbolos do atraso, mas, ao mesmo tempo, acreditavam que, se bem conduzidos, poderiam ser incluídos na luta revolucionária”, conta a historiadora.

Nos anos 1950, os comunistas passaram a investir mais sistematicamente na organização política no campo, enviando militantes para áreas de conflitos de terra, como Trombas e Formoso, no norte de Goiás. Para lá foram deslocados José Porfírio de Sousa, que mais tarde seria eleito o primeiro deputado estadual camponês no Brasil, e Dirce Machado, militante que ingressara no PCB aos 12 anos, encantada pela leitura de O Cavaleiro da Esperança, biografia romanceada de Luiz Carlos Prestes escrita por Jorge Amado.

Trombas e Formoso foi a mais bem-sucedida experiência decorrente da aliança entre comunistas e camponeses. Eles enfrentaram grileiros e jagunços e, entre 1954 e 1964, formaram uma comunidade agrícola baseada no princípio da autogestão que só viria a sucumbir após o golpe militar.

Dissertação: As representações do camponês e do latifundiário brasileiros: trabalhadores rurais e coronéis na cultura política comunista (1922-1964)
Autora: Paula Elise Ferreira Soares
Defesa: 9 de setembro
Programa de Pós-graduação em História da Fafich
Orientador: Rodrigo Patto Sá Motta