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Nº 1766 - Ano 38
12.3.2012

Pena armada

Tese identifica estratégias de denúncia e mobilização em crônicas publicadas por Carlos Heitor Cony logo após o golpe de 1964

Itamar Rigueira Jr.

A noite de autógrafos da coletânea de crônicas O ato e o fato, do ­jornalista Carlos Heitor Cony, ficou marcada como a primeira manifestação coletiva contra o regime militar que se instalara em abril de 1964. Quase meio século depois, aqueles 37 textos publicados no jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, são objeto de tese recém-defendida na Faculdade de Letras por Maurício Guilherme Silva Jr. Ele analisou as estratégias da narrativa de Cony, que por alguns meses utilizou seu espaço no jornal para falar do cotidiano – mantendo características da crônica como gênero e de seu próprio estilo – e ao mesmo tempo denunciar, segundo Maurício Guilherme, “as barbaridades da nação sitiada”.

O autor da tese aborda a crônica como objeto literário que se faz “espaço de discussão ética, em um país periférico dos pontos de vista cultural, sociopolítico e socioeconômico”. Ele conta que, no primeiro momento, Cony foi voz dissidente no próprio jornal, que se posicionou pró-golpe. E que, embora a censura ainda não tivesse se organizado e não atuasse com força, o jornalista chegou a sofrer ameaças por conta de seus textos.

Depois de um primeiro romance em que tratou da degradação do homem como ser social – O ventre foi lançado numa época em que o Brasil vivia ao ritmo da bossa nova e dos primeiros lances de Pelé –, Cony segue, nas crônicas de 64, como observa Maurício, “ansioso por investigar o homem, agora capaz de subjugar seus semelhantes”.

O autor descobriu também, por meio da leitura de 450 crônicas escritas por Cony em épocas diversas, que sua produção foi sempre muito ligada à reflexão sobre a classe média urbana, e antiburguesa por excelência. “Seu texto, que não é experimental, se estrutura numa ironia muitas vezes cáustica e num sentido de atualidade que não dispensa contextualização baseada na erudição e na abordagem jornalístico-historiográfica.”

Diálogo com o leitor

Tiago Capute
Ilustracao

Entre as estratégias de Cony está o que Maurício Guilherme denomina de “conclamação à luta”, baseada, sobretudo, no diálogo com o leitor. “Ele empresta seu olhar sobre os acontecimentos e inclui o leitor por meio de artimanhas simples como o uso da primeira pessoa do plural e a franquia de seu espaço para relatos e denúncias que chegavam na forma de cartas para a redação do jornal”, conta o autor, jornalista que escolheu a área de Letras para suas pesquisas de ­pós-graduação, e não por acaso resolveu estudar um tema da interface comunicação-literatura.

Na mesma linha de cumplicidade com aqueles que o acompanhavam quase diariamente, Carlos Heitor Cony constrói com os leitores um Brasil próprio, recorrendo, por exemplo, a expressões que se repetem – como “a quartelada de primeiro de abril”. “Ele cativa ao propor metáforas e designativos que ajudam a criar perfis de personagens como o presidente Castelo Branco. É como se ele compartilhasse armas com o leitor. De forma extremamente ética, Cony mostra nessas crônicas de 64 um Brasil que não encontrei em nenhum livro sobre o golpe militar, mantendo sempre a atitude de cronista”, ressalta Maurício Guilherme, que fez duas entrevistas com o jornalista, uma delas pessoalmente.

Outra estratégia identificada pela tese na produção do cronista daquele período é a utilização do “eu narrativo” que o caracteriza também como escritor profissional. Segundo o pesquisador, assim como em seus romances, Cony questiona as relações do homem com o mundo, não por meio de reflexões metafísicas, mas sob o ponto de vista do livre arbítrio. “A palavra homem aparece demais, ele recupera questões que afligem a humanidade desde sempre, tentando entender a busca pelo poder e denunciando a desumanização das relações no país sob a ditadura”, comenta Maurício.

Tese: Contra a “Revolução dos caranguejos” – Carlos Heitor Cony e as crônicas de resistência ao golpe militar de 1964
Autor: Maurício Guilherme Silva Jr.
Orientadora: Constância Lima Duarte
Programa: Pós-graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras
Defesa: 29 de fevereiro de 2012