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Nº 1770 - Ano 38
9.4.2012

Guignard sob luz especial

Livro revela metodologia de pesquisa abrangente sobre obra do pintor, realizada pelo Cecor/EBA e grupos da Fafich e do ICEx

Itamar Rigueira Jr.

A obra de um dos maiores pintores brasileiros ganhou estudo completo e profundo na UFMG. Meio século depois de sua morte, Alberto da Veiga Guignard (1896-1962) é tema de livro produzido pelo Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis (Cecor), da Escola de Belas-Artes. Pesquisa Guignard, que será lançado esta semana, é resultado de cerca de dez anos de pesquisa sobre 62 obras do pintor.

Organizado pela professora Anamaria Ruegger Almeida Neves e pela química Claudina Maria Dutra Moresi, o livro junta às análises técnicas – que definem uso de materiais (tintas e suportes), cores, pinceladas etc. – um levantamento bibliográfico, contextualização feita pela historiadora da arte Ivone Luzia Vieira e informações extraídas de entrevistas com ex-alunos, colecionadores, estudiosos e retratados.

“A escolha de Guignard se deve a sua importância como artista no Brasil e, em particular, em Minas Gerais, mas também a seu trabalho como professor”, justifica Anamaria Ruegger, lembrando que ele formou gerações de artistas, com metodologia própria de ensino. Claudina Moresi ressalta a importância do pintor no contexto do Modernismo e a necessidade de estudo sistemático de sua obra. “Esse gênero de trabalho, consolidado no exterior, ainda é novo no Brasil, onde há poucas iniciativas de catalogação de obras.”

A equipe da UFMG desenvolveu e revela metodologia para se conhecer uma obra de artista, que poderá ser útil até para dirimir dúvidas sobre a autenticidade das obras – especialmente no caso de Guignard, alvo de controvérsias envolvendo autoria. De acordo com Anamaria Ruegger, o grupo estudou mais obras, mas o livro só contempla as que tiveram sua autenticidade comprovada.

“O exame de algumas peças trouxe dúvidas. O que nos deu segurança foi aliar aos exames depoimentos de alunos e parentes de personalidades retratadas, histórias contadas por proprietários, fotografias de Guignard trabalhando, entre outros documentos”, salienta a pesquisadora. As entrevistas foram colhidas pelo Núcleo de História Oral da Fafich.

Outro parceiro importante foi o Departamento de Ciência da Computação, responsável pela informatização dos dados gestuais e iconográficos e pela preservação digital.

Precisão para pintar

A maior parte das obras estudadas pelo Cecor integra coleções particulares e foi analisada no laboratório, localizado na Escola de Belas-Artes. Para o estudo daquelas que pertencem ao Museu Casa Guignard, os técnicos se deslocaram até Ouro Preto. O Cecor analisou pinturas sobre tela, madeira maciça e compensada, papelão e desenho sobre papel. Algumas obras em tela e madeira começaram a ser preparadas com alunos – o livro revela manuscritos de aula, que contêm informações sobre materiais.

A pesquisa descobriu como Guignard usou as cores e os pincéis, por meio da tentativa incansável de repetição de combinações de tintas e gestos com os instrumentos. E concluiu que ele foi um pintor preciso, que pensava muito para fazer suas escolhas. “Diferentemente do que ainda se acredita, Guignard criava com intenções bem definidas, é possível garantir que uma imagem que parece borrada é intencional. Ele tinha pleno domínio sobre o que queria e o que fazia”, afirma Anamaria.

Diluição e incisões

Renata Garboci
Paisagem imaginária foi analisado por vários tipos de luzes especiais
Paisagem imaginária foi analisado por vários tipos de luzes especiais

Um dos quadros mais estudados pela equipe do Cecor é Paisagem imaginária (Noite de São João), de 1961, pertencente à coleção do Museu de Arte da Pampulha, muito representativa da fase mineira de Guignard. Em bom estado de conservação, o quadro (óleo sobre tela, 61cm x 46cm) foi analisado por diversos tipos de luzes especiais.

A luz rasante (de fonte paralela à tela) apontou relevos do suporte e da tinta, neste caso mais do suporte, já que o pintor usou tinta muito diluída. A luz transversa, que incide por trás, revelou as áreas de maior massa (quantidade de tinta). A luz ultravioleta, que encontra os pigmentos fluorescentes, mostrou que Guignard usou o vermelho e amarelo de cádmio nessa tela. A luz monocromática e o filme infravermelho deixaram perceber as linhas do desenho. Por fim, a radiografia identificou pigmentos: os elementos químicos mais pesados aparecem na cor branca, e os mais leves em tons de cinza. Nos quadros que usam a madeira como suporte, as análises revelam também incisões feitas pelo artista, como em Cristo no jardim das oliveiras, em que esse artifício acentua o sofrimento nos traços do rosto.

Outra etapa do estudo das obras envolve remoção com bisturi, de um local discreto, de microamostras do quadro, com área de 1 a 2 milímetros quadrados. Isso permite identificar os pigmentos e os aglutinantes (óleo ou têmpera, por exemplo) que formam a tinta. “No caso de Paisagem imaginária, a observação no microscópio (aumento de 10 a 200 vezes) deixou claro que Guignard usou uma camada de branco como preparação, então o cinza, e por fim as tintas coloridas. Depoimentos de alunos confirmaram que ele usava a técnica caracterizada por ‘sujar’ a tela de cinza, que altera o efeito das cores”, revela Claudina Moresi.

Ela conta ainda que os pesquisadores encontraram em duas obras – os retratos de Cecília Meireles, sobre madeira maciça, e de Ismael Nery, em papelão – carimbos que provavelmente são marcas da empresa que vendeu o material ao pintor. Outra curiosidade está ligada à descoberta de alterações realizadas pelo artista durante o processo criativo. No quadro Fantasia, os exames com luzes especiais revelam vestígios da localização anterior de uma das torres da igreja. “Algumas dessas alterações são percebidas a olho nu por quem tem mais treino”, diz Claudina. O trabalho mostrou mais sobre uma característica de Guignard: suas assinaturas, geralmente coloridas, não raro são localizadas de forma a integrar a composição da pintura.

Fugaz e eterno

Modernista por excelência, Alberto da Veiga Guignard personificou a teoria de Charles Baudelaire sobre o artista que alia o fugaz (o moderno) ao eterno (a tradição), segundo a pesquisadora Ivone Luzia Vieira, professora aposentada da UFMG e autora de capítulo em Pesquisa Guignard sobre a relação do pintor com a Modernidade.

“Em diversas de suas obras, Guignard trabalha muito bem a busca por um determinado estilo, de uma dada época, para modernizar aquela forma. Se em suas primeiras exposições os casarios coloniais aparecem próximos ao observador, na sua fase mineira ele afasta esse casario, quebrando a ilusão de espaço da perspectiva renascentista, e verticalizando o quadro. Ele mostra a sucessão de montanhas, por exemplo, não no sentido de profundidade, mas quase chegando à superfície pictórica”, explica Ivone Luzia.

A pesquisadora conta que Guignard estudou muito as flores, as quais pintou sobre fundos de paisagens surreais e distantes. Ainda de acordo com Ivone, ele foi um grande retratista, seguindo características modernas: rostos sem volume, roupas lisas, fazendo a expressão concentrar-se nos olhos e na boca.

O fluminense que ‘reinventou’ Ouro Preto

Nascido em Nova Friburgo (RJ), Guignard viveu por mais de 20 anos na Europa. Iniciou sua formação artística na Real Academia de Belas Artes de Munique e travou contato intenso com pintores modernos e suas obras. Estabeleceu-se, então, no Rio de Janeiro, como artista e professor – que baseava sua atuação mais em exemplos, gestos e expressões que em palavras.

Em 1944, convidado pelo prefeito Juscelino Kubitschek, mudou-se para Belo Horizonte para ministrar o Curso Livre de Desenho e Pintura, no Parque Municipal. A “Escolinha do Parque”, segundo informações do livro Pesquisa Guignard, mudou a maneira de se ensinar artes plásticas na cidade e formou grandes nomes da arte brasileira. Em sua passagem por Minas, Guignard tornou-se “o grande pintor de Ouro Preto, reinventando a cidade, suas montanhas e igrejas nas obras que produziu”, de acordo com a publicação.

Ivone Vieira lembra, ainda, que Guignard levava seus alunos para aulas na cidade, andava muito e instalava seu cavelete na rua, escolhendo recortes de janelas e igrejas. “Ele se apaixonou por Ouro Preto, que chamou de ‘cidade amor-inspiração’”, ressalta a professora, doutora pela Escola de Comunicação e Artes da USP e ex-docente de arte na Faculdade de Educação para alunos de licenciatura. Em Belo Horizonte, segundo ela, Guignard não mirou a paisagem arquitetônica, preferindo as montanhas, a Lagoa da Pampulha e o Parque Municipal.



Livro: Pesquisa Guignard
Organizadoras: Claudina Maria Dutra Moresi e Anamaria Ruegger Almeida Neves
Editado pela Escola de Belas-Artes da UFMG
200 páginas / distribuição dirigida
Lançamento: 12 de abril, às 19h, no Conservatório UFMG (avenida Afonso Pena, 1534)
Apoios: entre outros parceiros, a pesquisa sobre Guignard contou com recursos da Pró-reitoria de Pesquisa da UFMG, CNPq, Fapemig e Fundep