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Nº 1324 - Ano 27 - 15.08.2001

Pedro e pedros

Adair Carvalhais Júnior*

ilho de um mecânico de automóveis e de uma doméstica, Pedro nunca tinha ido a uma escola. A rua, a convivência com os amigos e os pais tinham sido seus professores até aquele momento. Mas seus pais o inscreveram no sorteio e Pedro foi escolhido. Era 1996, e a Escola Fundamental do Centro Pedagógico acabara de introduzir uma nova proposta político-pedagógica, em que o sorteio, implantado alguns anos antes, constituía peça fundamental.

Pedro foi matriculado na turma de uma das professoras mais experientes da escola. Ao contrário de vários de seus colegas, ele ainda não sabia ler e sequer identificava as letras. Também não sabia pegar no lápis, não sabia usar o uniforme e o banheiro e não conseguia permanecer assentado na carteira pelo tempo necessário. Bastava a professora se virar para o quadro que ele saía correndo da sala.

Recebi Pedro na minha sala de "diretor" - assim ele me chama, carinhosamente, até hoje - muitas vezes. Conversávamos pouco, pois ele, naturalmente, não conseguia se explicar. Mas delirava com o computador e permanecia ali até o final das aulas, quando era entregue aos seus pais.

Pedro foi o único aluno suspenso das aulas por mim, já sem qualquer recurso para fazê-lo ver que sua presença na escola e na sala de aula nos era fundamental: mesmo com nosso carinho mútuo, eu não o alcançava em toda sua complexidade de criança assustada com um mundo absolutamente novo e profundamente agressivo para com ela.

Ao final do ano, Pedro ainda não sabia ler, ao contrário de quase todos os colegas. No entanto, fez progressos consideráveis neste campo. Pedro aprendera muito mais que pegar no lápis. Aprendera a resolver seus problemas dialogando com colegas e professores, já permanecia por longos períodos na sala e aprendera que buscar soluções coletivas era muito mais importante que trabalhar individualmente. Só que ele ainda não sabia ler e não estava preparado para entrar no segundo ano, ao contrário de vários de seus colegas. Certamente seria reprovado, como certamente não conseguiria se matricular na escola um ano antes, se o sistema de ingresso fosse baseado em provas eliminatórias.

Pedro não foi reprovado. E os professores do segundo ano receberam não um menino cheio de deficiências, mas alguém que tinha crescido muito, em vários sentidos. E assim vem transcorrendo a vida escolar de Pedro. Foi assim do segundo para o terceiro ano, do terceiro para o quarto e até hoje, quando ele cursa o sexto ano. Durante esses anos, ele sempre deixou claras as suas grandes limitações e seu enorme esforço para superá-las. Pedro jamais foi reprovado na escola. Talvez por que acreditamos que a reprovação significaria um enorme desestímulo para quem vinha se esforçando para crescer e para se fazer entender na nossa sociedade letrada.

Curioso como ele continua me chamando de "diretor". Antes isto me incomodava um pouco, mas agora toda vez que o vejo pelo pátio me lembro de nossas tardes juntos. Lembro-me especialmente de seu rosto coberto de lágrimas quando tive que cumprir nosso combinado e suspendê-lo das aulas durante três dias.

Em breve, Pedro deixará a escola. Em breve, terá que buscar a continuidade de estudos em outro local. E claro que me dói imaginar as dificuldades por que passará, já que nem todas as escolas agem como o Centro Pedagógico. Por outro lado, me sinto feliz, pois a escola, apesar de não ter conseguido levar Pedro ao nível de excelência que merecia, permitiu que ele desfrutasse do acervo do saber universal, direito constitucional de todo cidadão brasileiro.

A escola ainda fez mais por Pedro. Foi o que descobri quando me encontrei com seus pais freqüentando as aulas do Programa de Educação de Jovens e Adultos do nível fundamental. Pedro estuda na parte da tarde, mas permanece na escola até 22 horas esperando o término das aulas deles. Numa destas noites, me encontrei com ele no pátio da escola. Já não é aquele menino pequeninho e arisco: está bem maior e engordou um pouco também. E quando ele me chamou de "diretor", ainda pude reconhecer o medo tão característico de seus olhos. Fiquei me perguntando o que ele temeria e logo fui capaz de imaginar uns dez motivos razoáveis para que Pedro morra de medo da vida. Dei-lhe um abraço, perguntei-lhe de seus pais e brinquei: "tá quase na hora de você me agüentar como professor, hein"?

Esta é uma história real e fala dos muitos pedros que freqüentam os bancos da Escola Fundamental e da UFMG. Mas é uma pena que não possa falar dos pedros que não estão entre nós. Dos pedros que não foram sorteados, dos pedros que não passaram no vestibular e, dolorosamente, dos pedros que estiveram entre a gente, mas que, por incapacidade nossa, não foram conservados ao nosso lado. Por nossa arrogância, por nossa falta de sensibilidade ou pura e simplesmente por nossa crença de que lugares como a Escola Fundamental e a Universidade Federal de Minas Gerais devem ser para os melhores e não para todos.

* Diretor Geral do Centro Pedagógico