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Nº 1324 - Ano 27 - 15.08.2001

/Geraldo Majela Martins

Um Machado freudiano

Virgínia Fonseca

psicanalista Geraldo Majela Martins sempre cortejou a literatura: "Até mesmo para dar certa leveza ao trabalho da ciência", justifica. Filósofo formado pela UFMG e professor de Clínica Psicanalítica do Unicentro Newton Paiva, Martins percebeu que as grandes descobertas da psicanálise foram, em certa medida, reveladas a Freud pelas obras literárias. Foi aí que decidiu investigar as entranhas de Dom Casmurro, obra-prima de Machado de Assis, e relacionar a saga de Bentinho e Capitu às grandes questões da Psicanálise. Desse mergulho, nasceu a dissertação Dom Casmurro - Tela escrita da lembrança: a trama do desejo, defendida em junho, junto ao mestrado em Estudos Literários da Faculdade de Letras.

Seu trabalho revela o caráter freudiano da obra de Machado de Assis - apesar de o escritor brasileiro não ter conhecido a teoria psicanalítica - e as semelhanças entre Bentinho e Hamlet, o hesitante personagem de Shakespeare. "Eles foram dominados por problemas parecidos", compara Geraldo Martins, nesta entrevista ao BOLETIM.

BOLETIM - Em seu trabalho, o senhor afirma que temas da clínica freudiana já eram tratados nas obras de Machado de Assis. Como isso acontece?

Geraldo Majela Martins - Freud dedicou-se muito a uma questão: O que quer uma mulher?. Em Dom Casmurro, Machado, sem conhecer a obra de Freud, formula essa pergunta de maneira muito curiosa, através do olhar de Capitu e de metáforas que ele lhe atribui e dão à personagem um silêncio e a eterna dúvida: ela traiu ou não traiu Bentinho? Mas voltando à pergunta O que quer uma mulher?: em Machado, ela é quase sinônimo de O que quer Capitu?. Por sinal, uma pergunta muito bem colocada para quem não conhecia a literatura psicanalítica.

B - A grande pergunta do romance seria, então, O que quer Capitu?

GMM - Talvez por isso esse texto seja um clássico, que continua tão importante e tão lido. Ele sustenta essa questão e as pessoas ficam curiosas. Todos querem saber sobre Capitu, o que ela quer. Ela fica nesse universo dos enigmas, tem raízes num mundo cercado de mistério, como a morte e o próprio viver. E o que quer Capitu ou o que quer uma mulher, na minha leitura, nada mais é do que a pergunta que todos nós nos fazemos sobre o que quer a vida.

B - Existe um caráter autobiográfico na sua dissertação?

GMM - É autobiográfico no seguinte sentido: a psicanálise sustenta que tudo o que fazemos só tem prazer quando diz respeito à nossa história. Se fizermos uma investigação, perceberemos que as escolhas são respostas a um momento da infância. Dom Casmurro tenta dar uma resposta a isso: a Capitu da Praia da Glória estava contida na da Rua de Matacavalos, tal qual a fruta dentro da casca? Qual a relação entre o que eu sou hoje e o que fui ontem? Machado trabalha muito bem essa questão em sua obra: já na velhice, Bentinho é um homem que resgata a sua infância para descobrir a relação entre o que ele é hoje e o que foi ontem. Recorri a essa obra, porque ela remete a um romance que idealizei na infância e que reformula uma pergunta que todos fizemos um dia: será que eu sou filho do amor?

B - Na comparação com a obra de Shakespeare, por que o senhor prefere colocar Dom Casmurro ao lado de Hamlet, quando a crítica sempre o compara a Otelo?

GMM - Como sempre, Machado nos passou a perna. De início, ele insinuou que o texto que estava cortejando era Otelo. Descobri que era mesmo Shakespeare mas, provavelmente, Hamlet. Os problemas de Bentinho - a hesitação, a culpa, a indecisão - são muito semelhantes aos de Hamlet. Ele prefere hesitar a ir atrás da verdade. Esse dilema do ser ou não ser, eis a questão, tão claro em Hamlet, é comum também a Bentinho. O último capítulo do livro de Machado se chama E bem, e o resto. A grande questão aí é saber se a Capitu da praia da Glória estava já na Capitu da casa de Matacavalos. Já a última frase do Hamlet é O resto é o silêncio. Só que aí penso que Machado é mais interessante do que Shakespeare, porque o resto em Machado é saber se a fruta estava dentro da casca. E para responder ao questionamento é necessário voltar ao começo do livro. Daí, formulei minha conclusão intitulada Um livro falho...

B - Por que falho?

GMM - Digo falho não no sentido de errado, de negativo, mas porque o autor não conclui a história, deixa essa tarefa para o leitor. O livro remete sempre ao princípio. Em Shakespeare, o resto é o fim, a morte. Em Machado, não. No final, é preciso recomeçar a ler, com outra visão. Ele sugere: vá lá agora e lê, vê se você encontra na menina do primeiro capítulo a mulher adúltera. O leitor se vê numa espiral sem fim. O resto em Machado é o que mantém o desejo.

B - E por falar em dúvida "hamletiana": Capitu traiu ou não traiu?

GMM - O Machado não deixa isso claro - e era essa sua intenção. Alguns acham que Capitu traiu, outros pensam que tudo era imaginação do Bentinho. Tenho a seguinte fantasia: acho que ela foi para a Suíça e aproveitou muito...

Dissertação: Dom Casmurro - tela escrita da lembrança: a trama do desejo

Autor: Geraldo Majela Martins

Orientadora: Professora Ana Maria Clark Peres

Defesa: Junho de 2001