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Nº 1398 - Ano 29 - 29.05.2003

/Júnia Ferreira Furtado


O desmonte de um mito

Jurandira Gonçalves

cinema e a TV impuseram-lhe uma imagem de mulher exuberante, sensual, dominadora e que abalou os alicerces da arraigada ordem social na Diamantina do século 18. Mas Chica da Silva, a ex-escrava que se uniu a um contratador de diamantes e com ele teve 13 filhos, foi um mito cuidadosamente construído nos últimos dois séculos, e que vem sendo desmontado por pesquisas recentes, como a da professora Júnia Ferreira Furtado, do departamento de História da Fafich.

Os estudos de Júnia Furtado, que viraram tema do livro Chica da Silva e o contratador dos diamantes - o outro lado do mito, publicado pela Companhia das Letras, revelam uma Chica da Silva sintonizada com os valores da elite branca. "Ela foi uma entre as várias mulheres negras ou mestiças que conseguiram entrar no universo dos brancos", diz a professora nesta entevista ao BOLETIM.

Chica da Silva não foi a heroína construída pelo cinema e pela novela?

Não. O livro procura exatamente fazer um trabalho diferenciado do mito. O último capítulo é um estudo da constituição do mito e de como ele se transformou ao longo do tempo. Quando começaram a falar de Chica da Silva, por volta de 1830, ela não tinha essa imagem de mulher sedutora, heroína. Era vista como boçal, feia, dominadora. Aos poucos, o mito modernizou-se, e sua imagem transformou-se. Quando comecei o estudo, descobri duas coisas: primeiro, era impossível estudar Chica sem estudar o contratador de diamantes João Fernandes, porque o rumo da vida dela foi direcionado pelo relacionamento com ele e pelos filhos daí nascidos. Depois, percebi a impossibilidade de trabalhar Chica da Silva desvinculada da trajetória de outras mulheres forras que viveram na mesma época. Chica não era uma heroína, muito menos uma exceção. Sua vida foi muito semelhante à de outras mulheres forras que viveram na capitania de Minas Gerais. Ela não buscava a redenção da raça negra.

Se não foi uma exceção, por que ela ganhou tanta notoriedade?

No início do século 20, houve um movimento de valorização turística e histórica de Diamantina. Os historiadores da época não concebiam uma Chica da Silva feia e começaram a modificar e a embelezar a personagem com a finalidade de usá-la para atrair turistas. Chica da Silva foi embelezada, embora sem qualquer base histórica. Já na década de 70, o movimento negro atribuíra a Chica o papel de redentora da raça negra, o que também foi feito sem qualquer lastro histórico. O filme do Cacá Diegues (Chica da Silva, de 1976, com Zezé Mota no papel-título) tenta mostrar uma suposta inversão de papéis na sociedade brasileira, onde a Chica seria exatamente a personagem histórica que mudaria a sina de dominação dos negros pobres pelos brancos. Chica da Silva seria a possibilidade de trabalhar a inversão dessa perspectiva, em que uma mulher negra, sedutora, com uma visão política da sua própria raça, domina o branco. Mas uma dominação muito precária, pois, ao final do filme, esse reinado acaba após a partida de João Fernandes.


Mas, então, quem foi Chica da Silva?

Chica nunca foi uma redentora de escravos ou da raça negra. Era uma grande proprietária e procurou imitar os hábitos da elite branca. Teve 13 filhos num período de 15 anos e não amamentou essas crianças. Ela procurou se comportar como uma mulher da elite, e se, por um lado, alcança essa condição por causa do concubinato com o contratador, por outro a saída de João Fernandes não altera em nada o status de Chica na sociedade. Depois que o contratador volta a Portugal, ela casa algumas de suas filhas com militares portugueses de baixa patente e consegue o apadrinhamento das maiores autoridades do Tijuco. Essa visão de uma Chica que escandalizava a sociedade não tem o menor respaldo na documentação histórica. Ela foi uma entre várias mulheres negras ou mestiças que conseguiram entrar no universo dos brancos.


Se existiam esses registros negativos e que desmentiam o mito, por que essa insistência em preservar uma imagem de mulher bonita, exuberante e defensora de uma raça, principalmente no cinema e na TV?

Primeiro, porque essa documentação ficou por muito tempo desorganizada e inacessível ao público. Segundo, porque, em geral, as pessoas que escreveram sobre Chica da Silva não eram historiadores. No caso do filme do Cacá Diegues, Chica foi usada, como falei anteriormente, para passar uma mensagem de inversão de uma lógica de ordenamento da sociedade brasileira. No caso da novela, não há qualquer preocupação histórica, apesar de toda a sua propaganda ter se assentado na idéia de que faria uma abordagem nesse sentido. A novela procurava apenas satisfazer o gosto do telespectador, o que é muito mais fácil através de uma visão romanceada.


Como a senhora avalia essa tendência de revisão dos personagens históricos?

Altamente positiva. Trata-se de um processo construído a partir de uma visão histórica e não-estereotipada do período colonial. Isso traz enormes contribuições históricas, mas incomoda muita gente, pois as pessoas gostam do mito cristalizado.


Ao desnudar o mito, a senhora não se sente meio desmancha-prazeres?

Não. Quem quiser continuar com o mito que fique com ele. Logo na introdução, faço uma advertência: se o leitor pretende se aventurar nas páginas do livro, que tenha o espírito aberto, pois a Chica que vai encontrar não se parece em quase nada com a Chica mitológica.


Livro: Chica da Silva e o contratador dos diamantes - o outro lado do mito
Autora: Júnia Ferreira Furtado
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 48,50
Lançamento: dia 11 de julho, às 19h30, no Museu Histórico Abílio Barreto (avenida Prudente de Morais, 202, Cidade Jardim)