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Nº 1398 - Ano 29 - 29.05.2003

 

 

A importância da Literatura… para a Engenharia

Marcelo Libânio*

provocação do título é, em si, modesta. Modesta pela cristalina relevância da Literatura em qualquer campo do conhecimento, ainda que subjacente. Da Medicina à Engenharia, da Farmácia às Belas-Artes. Resisto à pretensão de transcender minha parca experiência e restrinjo-me ao ramo que talvez conheça.

A motivação ao texto adveio da freqüência com a qual tenho me deparado, ao longo dos quase dez anos como docente na graduação da Escola de Engenharia da UFMG, com a velha frase: "O último livro que li foi para o vestibular". O desalento da frase é agravado, salvo exceções, nos trabalhos pelos textos incompreensíveis, nos quais sujeitos, predicados, objetos diretos e vírgulas digladiam-se em batalhas cruentas que nem os corretores ortográficos conseguem minimizar. Em semelhante contexto, já se fez menção neste mesmo espaço ao desvirtuado trabalho de revisão de texto que os membros de bancas examinadoras de dissertações de mestrado e teses de doutorado são instados a realizar.

O contato com a Literatura não é apenas benfazejo como forma de aprimoramento da expressão oral e escrita. Fomenta o desenvolvimento do raciocínio abstrato, imprescindível para os estudos de matemática e física, dois pilares das ciências exatas e das engenharias, como conseqüência. Todavia, o usufruir da Literatura requer inevitavelmente uma dose de solidão que, parece, os nossos alunos não conseguem se dar. Diferentemente da minha geração, há hoje permanente possibilidade e perspectiva de contato a qualquer tempo (celular), em qualquer lugar (Internet). Desfrutar o prazer da Literatura é essencialmente um momento do exercício da individualidade. Da escolha do livro ao tempo gasto para leitura.

Em outro contexto, talvez o mais importante, a Literatura influencia a forma de ver o mundo, suscita reflexões, sedimenta valores. Pelo muito que desvela e pelo muito que vela. Reminiscente, lembro-me do impacto de uma obra-prima da escritora belgo-francesa Marguerite Yourcenar, Alexis - o tratado do vão combate, que li na juventude e venho relendo pela vida afora, sempre com renovado prazer. Na Literatura nacional, não se passa incólume pelas páginas de Vidas secas, O tempo e o vento, Tereza Batista cansada de guerra ou Capitães de areia, sem refletir sobre a nossa realidade, apresentada a cada dia com disfarces imperfeitos.

Outra constatação da força de arraste - conceito presente em vários ramos da Engenharia - da Literatura materializa-se na quase recorrente decepção com a qual nos deparamos ao assistir a um filme fundamentado em um livro que já tenhamos lido. No primeiro, estamos diante da visão do diretor ou mesmo dos produtores. No segundo, ao selecionarmos as descrições dos lugares e das personagens, as tramas ou os diálogos que mais fundo nos tocam, tornamo-nos o diretor do nosso próprio filme. Deparei-me com esta constatação ainda na adolescência ao devorar em poucos dias o romance Papillon de Henri Charière, para, anos depois, decepcionar-me com o filme homônimo.

A relevância da Literatura consolidou-se após um fato que me marcou inexoravelmente. Avizinhava-se a Copa de 1974 na Alemanha, quando minha mãe anunciou uma surpresa à mesa de jantar. Supus tratar-se de uma nova TV em cores, já que a de que dispúnhamos há mais de dois anos jazia em um canto da sala suportando um vaso de beleza duvidosa. A prometida surpresa chegou com o crepúsculo. Livros. Caixas contendo coleções de Jorge Amado e Eça de Queiroz, obras de Goethe, Edgar Alan Poe, Shakespeare e tantos outros. Capas duras em verde, vermelho ou azul, títulos em dourado. Mergulhei sofregamente naquele oceano no qual continuo imerso até hoje. Quanto à Copa… bem, perdi vários jogos, assisti a alguns em casas de familiares, de vizinhos e até na calçada de uma loja de eletrodomésticos.

Recentemente, reli um daqueles exemplares -Werther -, cujas folhas já tra-ziam as manchas indeléveis do tempo. O romance marcante da minha adolescência (a)pareceu-me pueril na idade madura. Com a decepção desta releitura, pude redescobrir, em verdade, confirmar, velha assertiva. Há livros adequados para cada fase da nossa existência.

Por fim, muito do meu apreço pela Literatura advém do saber o quão árdua é a produção de um texto. Mesmo científico. Levamos, por vezes, dias para finalizar um parágrafo, na renovada frustração da busca da palavra mais adequada, da frase mais elegante, enfim, na construção do texto mais envolvente. Como na elaboração deste artigo. Situação paradoxal em relação ao tempo despendido por você, leitor, se porventura conseguiu chegar até aqui. Certamente menos que os agora famosos onze minutos…

*Professor adjunto do departamento de Engenharia Hidráulica e Recursos Hídricos da Escola de Engenharia