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Nº 1410 - Ano 29 - 02.10.2003

 

 

Clonagem humana*

Koichiro Matsuura**


olly está morta. O primeiro mamífero clonado a partir de uma célula adulta foi sacrificado em fevereiro deste ano. Isso aconteceu pouco depois de o nascimento de um clone humano ter sido anunciado ao público, embora a notícia não tenha sido confirmada. A morte de Dolly teve menos repercussão que seu nascimento. Mas está claro que ela levanta a questão dos efeitos de longo prazo da clonagem sobre o próprio organismo clonado. E, de certo modo, garante aos humanos algum adiamento ou prorrogação.

Os códigos que regem as pesquisas médicas governamentais proíbem a realização, em humanos, de experimentos de processos cuja segurança e eficácia ainda não tenham sido comprovadas por meio de testes em animais. Mas o que vai acontecer quando essa barreira técnica for derrubada, e o argumento da precaução por motivo de saúde deixar de ser válido?

Antes mesmo de se concretizar, a perspectiva da clonagem humana nos confronta com um desafio ético, cultural e político de grandes proporções. A clonagem humana diz respeito a dois procedimentos técnicos que diferem tanto nos seus objetivos quanto na prática. O objetivo da clonagem terapêutica não é chegar ao nascimento de um indivíduo, mas retirar células-tronco de um embrião criado pela substituição de células nucleares. O uso dessas células-tronco poderia transformar a medicina regenerativa. Então, por que hesitar?

O que está em jogo aqui é o status do embrião: é legítimo criar embriões cujo desenvolvimento jamais será levado a termo? E quem vai providenciar os incontáveis óvulos necessários para tais manipulações? Isso não poderá levar a uma nova forma de objetificação e utilização comercial do corpo feminino, especialmente o das mulheres mais pobres? Essas perguntas só podem ser respondi das por meio da criação de parâmetros legais rígidos para as pesquisas com embriões humanos, e, para chegar a se alcançar isso, são necessários novos debates.

O objetivo da clonagem reprodutiva, por outro lado, é chegar ao nascimento de uma criança que seria a réplica cromossômica de outro indivíduo. Mas clonar um organismo não é o mesmo que copiar uma pessoa. Há evidências disso nos mecanismos da reprodução sexual natural: os gêmeos verdadeiros são, sem dúvida, indivíduos diferentes, mas, mesmo assim, são mais semelhantes entre si do que seriam dois clones. Aqueles que associam a clonagem à realização dos mitos seculares da imortalidade ou ressurreição, ou, ainda, a uma busca impossível por cópias deles mesmos ou de outros, utilizam representações equivocadas e perigosas da genética.

Os clones humanos certamente não seriam monstros, mas poderiam rejeitar o projeto normativo que comandou seu nascimento. Precisamos investigar mais a fundo, examinando as motivações por trás de tal projeto e as visões de raça e de sociedade humanas subjacentes a ele. Esse tipo de manipulação consideraria os clones como portadores de um genoma específico, escolhido por suas propriedades específicas. Não é difícil imaginar as conseqüências psicológicas e sociais desastrosas que poderiam advir desse tipo de eugenia.

A natureza fornece a cada indivíduo uma identidade genética única e singular. Abrir mão dessa riqueza natural pode, algum dia, nos levar a uma divisão genética artificial entre humanos dotados de genomas originais e humanos cujos genomas são clonados. Será que a humanidade já não sofre tipos de discriminação que cheguem? Na melhor das hipóteses, a idéia da clonagem humana baseia-se numa série de fantasias e concepções equivocadas; na pior delas, no desejo de utilizar a genética para finalidades decididamente questionáveis, quer comerciais, ideológicas ou práticas.

A proibição da clonagem humana reprodutiva, recomendada primeiramente na Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, ratificada pela Assembléia Geral da ONU, em 1998, é, portanto, irrevogável. A Unesco foi a primeira organização intergovernamental a propor um programa consistente para tratar da bioética, com a criação do Comitê Internacional de Bioética, dez anos atrás, seguida pela formação do Comitê Intergovernamental de Bioética.

Estamos trabalhando numa declaração sobre dados genéticos, já que a sua utilização, se não for corretamente administrada, pode dar lugar a instâncias assustadoras de negação dos direitos humanos. Também nos solicitaram a formulação de uma ferramenta de trabalho universal com a bioética. Esse pedido confirma que a Unesco pode ser o fórum apropriado para um acordo pautado por critérios éticos que sirvam de ponto de referência comum. A ética da ciência e da tecnologia é uma das prioridades da Unesco, que está intensificando sua função de observadora e sua atividade de previsão. Um resultado disso foi a escolha do tema básico da sessão das Conversas do Século 21, no início deste mês, em Paris: a difícil e urgente pergunta `deve a clonagem humana ser proibida?'.

O homem não é um mamífero qualquer. Os animais podem ser reproduzidos por meio da clonagem. Mas os humanos são moldados pela educação, ciência e cultura, não pela clonagem.

*Artigo publicado na Folha de
S. Paulo
, de 21 de setembro
**Diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco)