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Nº 1485 - Ano 31 - 26.5.2005

 

 

Por uma cidadania radical

Maria Aparecida Moura*

um país de regime democrático como o Brasil, espera-se que as relações entre Estado e sociedade sejam norteadas pela igualdade de direitos. Nessa direção, tem-se por parâmetro que cidadão é aquele com irrestrito acesso aos direitos civis, políticos e sociais.

A educação, definida como direito social, é parte integrante da noção corrente de cidadania, sendo, na perspectiva de T. H. Marshall (Cidadania, classe social e status), condição sine qua non para a expansão dos demais direitos. As políticas de ação afirmativa, das quais as cotas são parte integrante, inserem-se nesta perspectiva de universalização real do direito à educação. Vale lembrar, no entanto, que o Brasil foi o último país a abolir a escravidão dos povos de origem africana. Noutras palavras, a cidadania para o negro brasileiro e para grande parcela da população ainda está longe de atingir os patamares satisfatórios previstos na Constituição.

É preciso ressaltar igualmente que não nos parece aceitável o fato de que, num Estado democrático de direito, com população formada por cerca de 19,7% negros entre 15 e 24 anos, apenas 2% cheguem ao ensino superior. Nesse sentido, é justamente o princípio da igualdade de direitos que orienta as políticas de ações afirmativas. É importante esclarecer que as cotas para a população negra no ensino superior devem ser compreendidas no contexto de uma discussão mais ampla _ as políticas de ações afirmativas.

As ações afirmativas são procedimentos obrigatórios ou voluntários norteadores de políticas públicas ou privadas dirigidas a segmentos específicos da sociedade. Têm por objetivo retificar os efeitos de práticas discriminatórias decorrentes do pertencimento racial, de gênero ou de origem nacional. As ações afirmativas não se restringem ao segmento negro e à ealidade norte-americana, da qual é um exemplo emblemático. Países como Índia, Malásia, Israel, Nigéria, Colômbia, Canadá e Alemanha já implementaram em certos momentos históricos algum tipo de política afirmativa, visando à promoção da igualdade por meio de medidas específicas.

No Brasil, a discussão sobre as políticas de ação afirmativa foi posta oficialmente pelo governo federal em 1995, com o lançamento do Programa Nacional de Direitos Humanos e evidenciou as contradições em relação ao tema.

Três fatos tornaram urgentes as demandas por ações afirmativas:

_ A mobilização dos movimentos sociais negros brasileiros;

_ A III Conferência Mundial contra o racismo: a xenofobia e formas correlatas de intolerância, realizada em Durban, em 2001;

_ O reconhecimento do estado de estagnação das condições de vida da população negra, evidenciado no cruzamento dos indicadores socioeconômicos apurados pelo Ipea e IBGE.

De acordo com Silva Júnior (2003)**, a adoção de políticas de ações afirmativas no ensino encontra amplo respaldo legal. No artigo 3 o , inciso I da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a temática é explicitada através da indicação de que a todos deve ser assegurada a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola. A Constituição Federal brasileira e algumas normas infraconstitucionais que se seguiram à promulgação do texto constitucional vigente também amparam, em termos legais, as medidas que compõem as políticas de ações afirmativas.

Além disso, o Brasil é signatário de atos e tratados internacionais nos quais figura a adoção do critério cor/raça para o estabelecimento de igualdades de oportunidades e a ampliação dos direitos. Dentre os tratados internacionais ratificados pelo Brasil estão a convenção internacional sobre eliminação de todas as formas de discriminação racial (promulgada pelo decreto 65.810, de 8 de dezembro de 1969) e a convenção relativa à luta contra a discriminação no campo do ensino (promulgada pelo decreto 63.223, de 6 de setembro de 1968).

No que concerne ao ensino superior brasileiro, as cotas têm esbarrado no argumento de seu caráter nocivo ao "bem-arquitetado" sistema meritocrático. Parece, aos olhos dos defensores desse sistema, que realizar políticas públicas com base no pertencimento étnico tornaria ainda mais vulneráveis os beneficiários dessas políticas, visto que o diploma, decorrente de processos de formação dessa natureza, não atestaria a habilidade profissional ou educacional do portador. Verifica-se aí um primeiro engano digno de nota. O processo de admissão baseado na neutralidade quanto ao pertencimento étnico-racial desconsidera a história de constituição da sociedade brasileira ao tentar escamotear o nosso passado escravocrata associado aos cinco séculos de discriminação racial generalizada. Se com a abolição da escravidão os negros tiveram incorporados os direitos civis, como salienta José Murilo de Carvalho (Cidadania no Brasil:o longo caminho), não se verifica nenhum outro evento sócio-histórico, por parte da sociedade, no sentido de conferir cidadania a esse segmento através da extensão específica dos demais direitos que compõem a tríade estabelecida por Marshall _ sociais, civis e políticos.

Ressalta-se ainda que, sob o manto da irrepreensível meritocracia, repousam letárgicos aqueles que já constataram o enorme fosso que impede a população de usufruir os direitos de cidadania.A defesa das cotas para a população negra constitui, portanto, estratégia fundamental na promoção de uma sociedade fundada na igualdade de direitos e numa concepção radical de cidadania.

Ao viabilizar as ações afirmativas, o Estado passa a adotar um comportamento ativo no sentido de governar para todos e de implementar políticas específicas que possam reduzir expressivamente a exclusão social em que se encontra a população negra brasileira.

**SILVA JÚNIOR, Hédio. Ação afirmativa para negros(as) nas universidades: a concretização do princípio constitucional da igualdade. In: SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e, SILVÉRIO, Valter Roberto. Educação e ações afirmativas: entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica. Brasília: Inep, 2003.

*Professora da Escola de Ciência da Informação da UFMG
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